Normas Constitucionais ‘Circunstancialmente’ Inconstitucionais? (por Juliano Taveira Bernardes*)
O chamariz é proposital. O título acima foi inspirado no pequeno, mas célebre livro “Normas constitucionais inconstitucionais?”, obra clássica do Direito Constitucional escrita por OTTO BACHOF (1914-2006)(i).
Porém, diferentemente do livro de BACHOF, o objeto deste ensaio não são as normas constantes de uma constituição. No título acima, por “normas constitucionais” devem ser entendidas as normas infraconstitucionais que sejam conformes à Constituição.
O tema remete aos recentes problemas jurídicos causados pela pandemia da Covid-19 e ao surgimento de decisões judiciais e artigos doutrinários(ii) a discutirem um novo tipo de inconstitucionalidade: a inconstitucionalidade “circunstancial”(iii).
Pretende-se debater, portanto, o (suposto) tipo de inconstitucionalidade a atingir certas normas infraconstitucionais que, durante circunstâncias excepcionais, deixam de ser aplicáveis. Muito embora devam continuar a ser aplicadas, posteriormente, pois não apresentam incompatibilidade constitucional definitiva.
Para ilustrar a relevância do assunto, veja-se a medida cautelar deferida pelo STF na ADI 6.357/DF(iv). Nessa decisão, concedeu-se interpretação conforme à Constituição a dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 “para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de Covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19”. Segundo o Ministro relator, ALEXANDRE DE MORAES, o “surgimento da pandemia de Covid-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas”, razão pela qual estaria justificada a “temporariedade da não incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine, e § 14, da LDO/2020 durante a manutenção do estado de calamidade pública”.
É dizer: em ação cujo objeto é a declaração de inconstitucionalidade de normas (ADI), o STF suspendeu a aplicação de preceitos legais, mas o fez apenas temporariamente, enquanto mantido o estado de calamidade pública decorrente da pandemia. Ou seja, a pretexto de realizar “interpretação conforme à Constituição”, a decisão acabou, implicitamente, por declarar a inconstitucionalidade “circunstancial” de normas da LRF e da LDO/2020. Normas essas que, passada a calamidade, serão novamente consideradas constitucionais, retomando-se a respectiva aplicabilidade!
Esse tipo de decisão, todavia, é inédito e equivocado, pois acabou por criar o tipo esdrúxulo das normas “por ora” inconstitucionais.
Porém, rompida a relação de conformidade entre uma norma infraconstitucional e a respectiva constituição que lhe dá validade, não há mais como retomá-la. Verificada a invalidade constitucional, não se admite convalidação posterior(v).
Bem por isso, no dia seguinte à decisão mencionada, já a questionávamos em postagem no Twitter: “Como explicar que a relação de compatibilidade constitucional (validade) de uma norma pode ser suspensa somente para determinado período? A norma ou é ou não é constitucional!”.
Não obstante, há quem defenda esse novo modelo de “inconstitucionalidade circunstancial”(vi).
A defesa dessa tese passa pela crítica ao modelo binário de reconhecimento da relação de inconstitucionalidade (constitucional ou inconstitucional, sem tertium genus). Assim, a nova “inconstitucionalidade circunstancial” poderia encaixar-se entre os chamados tipos “intermédios” de inconstitucionalidade, a exemplo da inconstitucionalidade progressiva, das normas “ainda” constitucionais, da inconstitucionalidade “pro futuro” ou da inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. Outra linha defensiva, advogada por FREIRE, FRAZÃO, MUDROVITSCH e RUFINO, toma por base, ainda, as teorias da “constituição viva” (Iiving constitucional do direito norte-americano)(vii).
Porém, nenhum desses argumentos soluciona o maior problema da teoria da “inconstitucionalidade circunstancial”: após a superação da situação anormal, como explicar a retomada da validade da norma declarada inconstitucional?
A começar da última linha argumentativa, as teorias ligadas à plasticidade constitucional – seja a constituição viva, a constituição dúctil, a mutabilidade constitucional e outras do mesmo naipe – têm todas a ver com mudanças a que se sujeita o parâmetro de controle (bloco de constitucionalidade). Não servem, portanto, para justificar a “temporização” da relação de invalidade do objeto do controle em si, i.e., as normas infraconstitucionais porventura declaradas circunstancialmente inconstitucionais.
Afinal, a inconstitucionalidade é relação de desconformidade verificada entre um ato (objeto) e pelo menos um preceito normativo ao qual se atribui supremacia constitucional (parâmetro). Logo, eventual mutabilidade dos parâmetros utilizados para determinar a inconstitucionalidade não diz com a transitoriedade da inconstitucionalidade em si. Se as normas da constituição podem sofrer modificações (formais ou informais), daí não decorre a reflexa superação das relações anteriores de desconformidade constitucional, nem a constitucionalidade superveniente de normas inconstitucionais.
Nesse sentido, conforme antiga jurisprudência do STF(viii), não há falar em rescisão de acórdãos proferidos em ADI (v. art. 26 da Lei 9.868/99). Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade, se confirmada por decisão final, não pode ser revertida. Sem margem a alguma invalidade “transitória” ou “circunstancial”.
Ademais, o próprio STF rechaça o fenômeno da “constitucionalidade superveniente”, ainda que o próprio constituinte derivado, por emenda constitucional, queira validar a norma inconstitucional(ix).
Já a invocação de tipos intermédios de inconstitucionalidade tampouco surte êxito.
Na inconstitucionalidade progressiva, a norma está em processo de “inconstitucionalização” findo o qual será considerada definitivamente inconstitucional. Mesmo fenômeno sucede com as normas “ainda” constitucionais: o tribunal não chega a reconhecer-lhes a inconstitucionalidade; pelo contrário, declara-as “ainda constitucional”, embora prenuncie a probabilidade de se converter tal “situação imperfeita” num estado de inconstitucionalidade definitivo.
Também nas hipóteses de inconstitucionalidade “pro futuro” e de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, a norma é declarada peremptoriamente inconstitucional. Sem volta! O que nelas de diferente ocorre é a mera postergação do regime de sanções normalmente decorrentes do reconhecimento da inconstitucionalidade (no caso da inconstitucionalidade “pro futuro”), ou, então, a simples não aplicação dessas sanções (na inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade).
É que a inconstitucionalidade não se confunde com o valor do ato inconstitucional, nem com o regime jurídico adotado para sancioná-lo ou para lhe retirar os efeitos jurídicos. Assim, ainda que inválida, a norma pode seguir com aplicabilidade e eficácia, embora excepcionalmente. Mas ela nunca deixará de ser considerada inconstitucional, com ou sem pronúncia de nulidade.
Daí o retorno à inconsistência da teoria da “inconstitucionalidade circunstancial”!
Enfim, a solução de problemas jurídicos causados por circunstâncias excepcionais não parece passar pela supressão temporária da validade de determinada norma. Melhor reconhecer que toda norma está sujeita a exceções implícitas (cláusulas “a menos que”) que podem afastar sua aplicabilidade em situações anormais, o que é algo bem diverso.
Aí está o campo teórico para utilizar a teoria da derrotabilidade das normas.
Tema para o próximo ensaio!
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* Juiz Federal. Mestre em “Direito e Estado” pela Universidade de Brasília – UnB. Especialista em “Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos” pela Universidade de Pisa/Itália.
(i) Ver: BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. de José Manuel M. Cardoso da Costa, Coimbra: Almedina, 1994. No livro escrito a partir de conferência proferida em 20-7-1951, BACHOF sustenta que o direito positivo constitucional está submisso a certas normas do direito natural (direito supralegal ou suprapositivo, na dicção dele). Segundo BACHOF, quando a constituição incorpora alguma norma de direito supralegal, isso tem apenas “significado declaratório e não constitutivo: tal incorporação não cria direito, mas antes o reconhece” (op. cit., p. 45). Ou seja, “o conceito material da constituição exige tome-se em consideração o direito supralegal” (idem, p. 46). Daí, a relação de inconstitucionalidade abrange não apenas infrações a preceitos textualmente formulados no documento constitucional, mas também infrações às normas não escritas da constituição material. Assim, o direito supralegal “vale” independentemente de reconhecimento. Logo, utilizando-se como parâmetro normas de direito suprapositivo, seria possível realizar controle de constitucionalidade, mesmo em relação às normas originais de uma constituição, até para se reputar inconstitucional uma norma “fraca” da constituição, quando em antinomia com outra norma “forte” da constituição, advinda da incorporação de algum preceito do direito suprapositivo. Porém, a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade de preceitos originais da própria constituição já não era aceita pelo Tribunal Constitucional alemão (v. Az. III ZR 153/50, BGHZ 1, 274 [276]), como admitiu o próprio BACHOF (op. cit., p. 20). Também no Brasil, não se aceita a inconstitucionalidade de normas constitucionais originais (i.e., criadas pelo poder constituinte originário), até porque não haveria órgão competente para assim declará-las. Qualquer órgão que as reputasse inconstitucionais, incluindo o STF, agiria indevidamente como tutor do próprio constituinte originário, e não como órgão simplesmente constituído pela Constituição (no STF, v. ADI 815/RS, AgRg na ADI 4.097/DF e MC na ADI 3.300/DF).
(ii) Em defesa da “inconstitucionalidade circunstancial”, cf. FREIRE, Alonso; FRAZÃO, Carlos Eduardo; MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; RUFINO, Victor Santos. O fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial. Jota, Brasília, 25-4-2020. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-fenomeno-da-inconstitucionalidade-circunstancial-25042020>. Acesso em: 26 abr. 2020. Contra: NASCIMENTO, Roberta Simões. Existe uma inconstitucionalidade ‘circunstancial’? Jota, Brasília, 6-5-2020. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/existe-uma-inconstitucionalidade-circunstancial-06052020>. Acesso em: 7 maio 2020.
(iii) Antes da pandemia, a terminologia “inconstitucionalidade circunstancial” já fora utilizada por ANA PAULA DE BARCELLOS (Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 231-232). Nessa acepção, a inconstitucionalidade circunstancial seria aquela verificada a partir da incidência da regra sobre situação de fato específica, cujas circunstâncias concretas produziriam uma norma inconstitucional. Nas palavras de BARCELLOS, em razão da “complexidade dos efeitos que se pretendam produzir e/ou da multiplicidade de circunstâncias de fato sobre as quais incidem, também as regras podem justificar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteúdo a normas diversas.” Assim, não seria “de estranhar que determinadas normas possam ser inconstitucionais em função desse seu contexto particular, a despeito da validade geral do enunciado do qual derivam” (BARCELLOS, op. cit., p. 232). No mesmo sentido: LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 260-261.
Porém, o presente ensaio cuida de outras perspectivas do fenômeno. Afinal, a considerar-se a tipologia proposta por BARCELLOS e ainda que um dispositivo normativo possa mesmo ensejar mais de uma norma, seja em razão da polissemia do texto (hipóteses de interpretação), seja em virtude do quadro operativo em face do qual deva incidir (hipóteses de incidência), eventual declaração de inconstitucionalidade (sem redução do texto) será sempre definitiva, embora circunscrita a determinadas hipóteses (de interpretação ou de incidência). Ou seja, o caráter “circunstancial” do tipo de inconstitucionalidade sugerido por BARCELLOS não tem a ver com a “transitoriedade” do vício.
(iv) Decisão monocrática proferida pelo Min. ALEXANDRE DE MORAES em 29-3-2020. Ela foi referendada pelo Plenário do STF, na sessão do dia 13-5-2020, mas a ação acabou extinta, por perda superveniente de objeto, em razão da aprovação da Emenda Constitucional 106/2020 (“Orçamento de Guerra”), que gerou o mesmo efeito decorrente da decisão.
(v) Como ensina RICCARDO GUASTINI, a “validade é uma propriedade de todo atemporal. Com efeito, ela depende exclusivamente da relação (atemporal, somente: lógica, não cronológica) de uma norma – e do ato normativo que lhe tenha produzido – com outras normas.” Assim, na “constância das normas que lhe sejam estruturalmente e materialmente supraordenadas, cada norma é ou válida ou inválida. Não pode adquirir a validade, nem perdê-la” (La sintassi del diritto. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014, p. 302).
(vi) FREIRE, FRAZÃO, MUDROVITSCH e RUFINO, por exemplo, no artigo já mencionado, sustentaram que “uma lei pode ser inconstitucional em razão de sua incompatibilidade com a realidade vivida em determinado momento, o que faz com que ela não se amolde ou passe a não mais se amoldar às exigências constitucionais, ainda que momentaneamente. Isso significa que, superada a situação, uma norma pré-existente poderá retomar sua compatibilidade com a Constituição, mas também que uma norma aprovada durante o estado de excepcionalidade poderá passar a ser compatível com ela.”
(vii) Conforme tais autores: “O fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial enfatiza não só ideia de que a Constituição está em vigor, mas também a de que ela está atenta às circunstâncias em seu entorno. Uma vez unidas essas duas ideias, é possível afirmar que a Constituição não é só transformada de acordo com as necessidades de seu tempo, mas também pela situação excepcional vivida por seus destinatários. É em razão dessa relevante plasticidade temporal e circunstancial que podemos falar de uma genuína ‘Constituição viva’.”
(viii) Ver 3AR 878/SP e AgRg na AR 1.365/BA, Pleno do STF.
(ix) Como sintetizado no voto do Ministro CELSO DE MELLO, “a superveniência de emenda à Constituição, derivada do exercício, pelo Congresso Nacional, do poder de reforma, não tem o condão de validar legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado no texto da Carta Política” (RE 346.084/PR). Ver, ainda, RE 439.796/PR, RE 474.267/RS e ADI 2.158/PR.