Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Questionamento de enunciado sumular. Possibilidade.
Cabe ADPF contra Súmulas?
Antes de respondermos a essa relevante indagação, cumpre recordar que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) — a qual tem assento no art. 102, § 1º, da CRFB e é disciplinada pela Lei 9.882/1999 — é uma forma de controle concentrado de constitucionalidade que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, sendo também cabível “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.882/1999); em qualquer caso, contudo, deve atender ao princípio da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999), a significar que sua admissibilidade pressupõe a inexistência de qualquer outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade do ato impugnado. No mais, é sempre da competência do Supremo Tribunal Federal, e os legitimados para propô-la são os mesmos legitimados para a Ação Direta de Inconstitucionalidade (CRFB, art. 103).
O Supremo, tradicionalmente, tem recusado o processamento de ADPF contra enunciado sumular do próprio STF. Demais disso, também tem pontuado que a ADPF não é a via adequada para se obter a interpretação, a revisão ou o cancelamento de súmulas vinculantes. Confira:
“(...) 1. O enunciado da Súmula desta Corte, indicado como ato lesivo aos preceitos fundamentais, não consubstancia ato do Poder Público, porém tão somente a expressão de entendimentos reiterados seus. À argüição foi negado seguimento. 2. Os enunciados são passíveis de revisão paulatina. A argüição de descumprimento de preceito fundamental não é adequada a essa finalidade.” (ADPF 80 AgR, Relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2006, DJ 10-08-2006 PP-00020 EMENT VOL-02241-01 PP-00001 RT v. 95, n. 854, 2006, p. 103-106)
“(...) 2. A arguição de descumprimento de preceito fundamental não é a via adequada para se obter a interpretação, a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante.” (ADPF 147 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/2011, DJe-067 DIVULG 07-04-2011 PUBLIC 08-04-2011 EMENT VOL-02499-01 PP-00001)
Nada obstante, é importante notar que o STF já há muito vem admitindo o ajuizamento de ADPF contra decisões judiciais que, diante de determinada controvérsia jurisdicional, acabem por representar violação a algum preceito fundamental de nossa Constituição. Por todos, citamos um dos leading cases na matéria:
"(...) argüição de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada pelo Presidente da República, em que se discute se decisões judiciais que autorizam a importação de pneus usados ofendem os preceitos inscritos nos artigos 196 e 225 da CF (...). Sustenta o argüente que numerosas decisões judiciais têm sido proferidas em contrariedade a Portarias do Departamento de Operações de Comércio Exterior - DECEX e da Secretaria de Comércio Exterior - SECEX, Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA e Decretos federais que, expressamente, vedam a importação de bens de consumo usados, com especial referência aos pneus usados. Inicialmente, por maioria, rejeitou-se a preliminar de não cabimento da ação. Reputou-se atendido o princípio da subsidiariedade, tendo em conta a pendência de múltiplas ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, inclusive no Supremo, nas quais há interpretações e decisões divergentes sobre a matéria, o que tem gerado situação de insegurança jurídica, não havendo outro meio hábil a solucionar a polêmica sob exame." ADPF 101/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 11.3.2009. (ADPF-101)
Ora, se é sabido que as Súmulas de um dado Tribunal nada mais são do que a síntese do magistério jurisprudencial envolvendo uma determinada controvérsia jurídica, e se vimos que o STF admite ADPF contra decisões judiciais, por qual razão os enunciados sumulares não haveriam de ser considerados como ato do Poder Público, para fins de propositura de ADPF?
Nesse sentido, é oportuno gizar que o STF, recentemente, analisara, em ADPF, verbete de Súmula do TST relacionado à interpretação de dispositivo legal da CLT:
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ART. 522 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. INC. II DA SÚMULA N. 369 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. DEFINIÇÃO DE NÚMERO MÁXIMO DE DIRIGENTES SINDICATOS COM ESTABILIDADE NO EMPREGO. RECEPÇÃO DO ART. 522 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL. AUSÊNCIA DE ESVAZIAMENTO DO NÚCLEO DA LIBERDADE SINDICAL PELA NORMA LEGAL E PELO ENUNCIADO. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL IMPROCEDENTE. 1. A liberdade sindical tem previsão constitucional, mas não se dota de caráter absoluto. A previsão legal de número máximo de dirigentes sindicais dotados de estabilidade de emprego não esvazia aquela liberdade, que se preserva para cumprir a finalidade de autonomia da entidade sindical, não para criar situações de estabilidade genérica e ilimitada sem se conciliar com a razoabilidade e a finalidade da norma constitucional garantidora do direito. 2. Recepção da norma legal acolhida em precedentes do Supremo Tribunal Federal. Súmula que expressa o que a jurisprudência deste Supremo Tribunal não contraria a Constituição da República. 3. Arguição de descumprimento de preceito fundamental improcedente. (ADPF 276, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-137 DIVULG 02-06-2020 PUBLIC 03-06-2020)
Veja, porém, que não se cuidava de uma ADPF movida direta e especificamente contra um enunciado sumular. Também estava em jogo a discussão sobre a recepção, pela CF de 1988, de norma pré-constitucional prevista na CTL (art. 522).
Recentemente, no entanto, o STF analisou a admissibilidade de uma ADPF (n. 501) cujo objeto central era, precisamente, um enunciado sumular. Para ser mais exato, discutia-se se a Súmula 450 do TST viola preceito fundamental da Constituição.
O Relator, Min. Alexandre de Moraes, havia extinguido o processo sem resolução do mérito por entender que não seria cabível ADPF contra súmula de jurisprudência. O Governador do Estado de Santa Catarina, autor da ação, interpôs agravo contra essa decisão monocrática, conforme autoriza o art. 4º, § 2º, da Lei 9.882/1999. E teve êxito em sua irresignação.
Com efeito, a maioria dos Ministros seguiu o voto do Min. Ricardo Lewandowski. Para ele, há precedentes em que o Supremo entende ser cabível a ADPF contra súmulas quando essas enunciam preceitos gerais e abstratos. Reputou preenchido, também, o princípio da subsidiariedade, ante o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, bem como a verificação da inutilidade de outros meios para a preservação do preceito. Desse modo, concluiu ser viável o uso da ADPF como meio idôneo para, em controle concentrado de constitucionalidade, atacar ato do Poder Público que tem gerado controvérsia judicial relevante, ainda que se trate de um enunciado da Súmula de Jurisprudência.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
ADPF 3/CE, rel. min. Sydney Sanches, ADPF 12/DF e 13/SP, ambas de relatoria do Min. Ilmar Galvão
Como sabemos, também editadas pelo STF (CRFB, art. 103-A).
Desde que não transitadas em julgado, como se percebe deste outro julgado: “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE – INOBSERVÂNCIA – INVIABILIDADE DE REFERIDA AÇÃO CONSTITUCIONAL – DOUTRINA – PRECEDENTES – POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO, MEDIANTE ADPF, DE DECISÕES JUDICIAIS, DESDE QUE NÃO TRANSITADAS EM JULGADO – CONSEQUENTE OPONIBILIDADE DA COISA JULGADA EM SENTIDO MATERIAL À ADPF – PRECEDENTE – O SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA “RES JUDICATA” – RELAÇÕES ENTRE A COISA JULGADA MATERIAL E A CONSTITUIÇÃO – RESPEITO PELA AUTORIDADE DA COISA JULGADA MATERIAL, MESMO QUANDO A DECISÃO TENHA SIDO PROFERIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ADPF: AÇÃO CONSTITUCIONAL QUE NÃO DISPÕE DE FUNÇÃO RESCISÓRIA – EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA JUDICIAL RELEVANTE CARACTERIZADA POR JULGAMENTOS CONFLITANTES DE ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS DIVERSOS: PRESSUPOSTO NECESSÁRIO E ESSENCIAL AO VÁLIDO AJUIZAMENTO DA ADPF (...) ” (ADPF 249 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 29-08-2014 PUBLIC 01-09-2014)