Autotutela administrativa. Decadência. Lei estadual. Prazo decenal. Inconstitucionalidade. STF, ADI 6.019
A autotutela administrativa reconhece à Administração Pública o poder-dever de declarar a nulidade de seus próprios atos (ilegais), sem precisar recorrer, previamente, ao Poder Judiciário para que o fizesse. Construída em nível doutrinário como uma projeção do decantado princípio da legalidade que rege a atividade administrativa, ganhou impulso sobretudo com a edição, em 13 de dezembro de 1963, da Súmula 346 do STF, assim redigida:
“A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” (Súmula 346 do STF)
O conteúdo da Súmula 346 restou complementado pela Súmula 473, também do STF. Editada em 3 de outubro de 1969, acrescentou, ao contexto da autotutela administrativa, o poder-dever de revogar atos administrativos (discricionários) por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. Demais disso, deixou claro que o exercício da autotutela pela Administração sempre se mostra passível de apreciação judicial (controle de legalidade, não de mérito), mercê do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, característico do sistema de unidade de jurisdição por nós adotado desde o advento da Constituição de 1891. Recorde-se o teor da Súmula 473 do STF:
“A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” (Súm. 473 do STF)
Esse consolidado magistério jurisprudencial passou a contar com expressa previsão legal ante o advento da Lei 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo Federal), cujo art. 53 é claramento inspirado em tais verbetes sumulares:
Lei 9.784/1999
Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
A mesma Lei 9.784/99, em seu art. 54, estabelece que, no exercício da autotutela administrativa, o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 5 anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé (art. 54 da Lei 9.784/1999). No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento (art. 54, § 1º). Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato (art. 54, § 2º), independentemente do nome atribuído pela autoridade.
Lei 9.784/99
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Importante ressaltar, nesse ponto, que a doutrina e a jurisprudência firmaram compreensão na trilha de que, à míngua de disciplina diversa na legislação local (estadual, distrital ou municipal), será aplicável subsidiariamente a decadência administrativa quinquenal disciplinada na lei federal. Por isso, aliás, é correto afirmar que não há, hoje, a possibilidade de a anulação de um ato administrativo não estar sujeita a prazo decadencial sob o pretexto de falta de norma legal a prevê-lo:
“A Lei n. 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria.” (Súmula 633 do STJ)
“O Superior Tribunal de Justiça entende que, caso o ato acoimado de ilegalidade haja sido praticado antes da promulgação da Lei 9.784/99, a Administração tem prazo de cinco anos a partir da vigência da aludida norma para anulá-lo; e, se tiver sido realizado após a edição da mencionada Lei, o prazo quinquenal da Administração contar-se-á da prática do ato tido por ilegal, sob pena de decadência, salvo comprovada má-fé. Precedentes (...)” (AgRg no REsp 1553593/RN, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/05/2016, DJe 13/05/2016)
“1. A Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n.º 1.114.938/AL, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/04/2010, DJe 02/08/2010, processado nos moldes do art. 543-C do CPC, firmou entendimento no sentido de que "os atos administrativos praticados antes da Lei 9.784/99 podem ser revistos pela Administração a qualquer tempo, por inexistir norma legal expressa prevendo prazo para tal iniciativa. Somente após a Lei 9.784/99 incide o prazo decadencial de 5 anos nela previsto, tendo como termo inicial a data de sua vigência (01.02.99)". (AR 3.896/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2015, DJe 06/11/2015)
No âmbito estadual ou municipal, ausente lei específica, a Lei Federal nº 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária, haja vista tratar-se de norma que deve nortear toda a Administração Pública, servindo de diretriz aos seus órgãos. Destarte, editada lei local posteriormente, esta incidirá apenas a partir dos atos administrativos praticados após sua vigência, não interrompendo a contagem do prazo decadencial já iniciado com a publicação da norma federal.” (AgRg no RMS 25.979/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 09/04/2013, DJe 16/04/2013)
Isso sinalizava, portanto, que esse prazo decadencial para a autotutela administrativa poderia ser diferente em âmbito estadual, distrital ou municipal, conforme as respectivas leis. Apenas em caso de ausência de lei local é que seria aplicável, à respectiva Administração Pública, a decadência quinquenal disposta no art. 54 da Lei 9.784/1999. Disso decorria, pois, que certa Administração Pública estadual, do Distrito Federal ou mesmo municipal poderia, no exercício da sua autonomia político-administrativa, definir prazo diverso para a decadência do direito de revisão de seus próprios atos administrativos, inclusive se superior àquele eleito pelo legislador federal.
Não obstante, o STF, em julgamento de abril de 2021, decidiu que é inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 (dez) anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual. Entendeu-se que, se os demais estados da Federação aplicam, indistintamente, o prazo quinquenal para anulação de atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos administrados, seja por previsão em lei própria ou por aplicação analógica do art. 54 da Lei 9.784/1999, não há fundamento constitucional que justifique a situação excepcional de um determinado estado-membro cuja lei preveja um prazo decadencial decenal. Logo, impõe-se o tratamento igualitário nas relações Estado-cidadão.
“É inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 (dez) anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual.
O prazo quinquenal consolidou-se como marco temporal geral nas relações entre o Poder Público e particulares e esta Corte somente admite exceções ao princípio da isonomia quando houver fundamento razoável baseado na necessidade de remediar um desequilíbrio específico entre as partes.
Se os demais estados da Federação aplicam, indistintamente, o prazo quinquenal para anulação de atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos administrados, seja por previsão em lei própria ou por aplicação analógica do art. 54 da Lei 9.784/1999, não há fundamento constitucional que justifique a situação excepcional de um determinado estado-membro. Logo, impõe-se o tratamento igualitário nas relações Estado-cidadão.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 10, I, da Lei 10.177/1998 (5) do estado de São Paulo. Vencidos os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli que, preliminarmente, não conheceram da ação e, no mérito, julgaram improcedente o pedido. O ministro Marco Aurélio (relator) também julgou o pedido procedente, mas ficou parcialmente vencido por declarar a inconstitucionalidade do dispositivo ante a existência de vícios formal e material.”
ADI 6019/SP, relator Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgamento virtual finalizado em 12.4.2021 (segunda-feira), às 23:59
No mais, sobreleva responder a alguns questionamentos a fim de que se tenha a compreensão correta sobre o tema:
1º) O entendimento firmado pelo STF alude expressamente a “lei estadual” (no caso, foi julgada, como vimos, a constitucionalidade de uma lei paulista, mais precisamente o art. 10, I, da Lei do Processo Administrativo no Estado de São Paulo (Lei 10.177/1998). O mesmo raciocínio é aplicável para leis municipais ou do Distrito Federal? Sim. Os motivos que levaram o Supremo a declarar a inconstitucionalidade de lei estadual que estabelecia prazo decadencial de 10 (dez) anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual também se aplicam, indubitavelmente, a leis municipais ou distritais.
2º) O julgamento fala que “É inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 (dez) anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual.”. Se o prazo fosse menor de 10 anos, mas superior a 5 anos, seria admissível? Não. Em realidade, fica claro do julgamento do Excelso Pretório que a inconstitucionalidade resulta de ter sido adotado prazo decadencial superior àquele previsto na lei federal (5 anos — art. 53 da Lei 9.784/1999) e na esmagadora maioria de leis estaduais e municipais.
3º) Seria correto afirmar que Estados, Distrito Federal e Municípios não teriam competência para editar lei para regular o prazo decadencial atinente à aututela administrativa exercida no âmbito do respectivo ente federativo? Não. O Supremo não lhes negou essa competência, até porque diz respeito à autonomia político-administrativa assegurada na Constituição Federal. Simplesmente, não podem editar, em matéria de autotutela administrativa, prazo decadencial que seja superior a 5 anos: poderiam, no entanto, fixá-lo em um prazo menor.
Para finalizar, e apenas para fins didáticos, resumimos o julgado em destaque com a seguinte frase:
É inconstitucional lei estadual, distrital ou municipal que estabeleça prazo decadencial superior a 5 anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela respectiva Administração Pública.
Para nós, essa síntese retrata com exatidão as lições repassadas pelo STF no julgamento da ADI 6019.