Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (“Lista suja do trabalho escravo”). Constitucionalidade. ADPF 509.
O STF acaba de decidir que é constitucional o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, também chamado de “lista suja do trabalho escravo”. Mas o que efetivamente estava em jogo? Quais as controvérsias jurídicas envolvidas com a discussão?
Vamos lá.
A ADPF 509 foi proposta pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) contra a Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4/2016 e, em face do efeito repristinatório próprio às ações do controle concentrado de constitucionalidade, contra toda a cadeia de normas relacionadas à instituição da “lista suja do trabalho escravo”: Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2/2015, Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2/2011 e Portaria MTE nº 540/2004. Perceba, desde logo, que o debate é antigo e ainda não havia sido solucionado pelo STF, conquanto inúmeras ações de controle concentrado de constitucionalidade já tivessem sido ajuizadas com objeto semelhante (ADI 3347, ADI 5115, ADI 5209, ADPF 489, ADPF 491, ADI 5802 etc.).
Na ação, argumentava-se que a criação do cadastro em tela dependeria de lei em sentido formal. Nesse sentido, a arguente defendia que o art. 87, parágrafo único, II, da CRFB somente autoriza os Ministros de Estado a expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos. O Cadastro em foco, no entanto, teria sido criado por Portaria destituída de arrimo legal. Tanto é assim — alegava a demandante — que, à época do ajuizamento da ação, a criação desse Cadastro de Empregadores era objeto do PL 7014/2017, havendo inclusive Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo 532/2016 que visava sustar exatamente a Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4/2016.
O STF, contudo, rechaçou os argumentos tecidos pela requerente.
O ponto mais sensível dizia respeito com a alegada ofensa ao princípio da reserva legal. Para o Supremo, contudo, o cadastro combatido dá efetividade à Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e prestigia seus princípios reitores, mais precisamente o da “transparência ativa”, que impõe aos órgãos e entidades o dever de promover a divulgação de informações de interesse público, de forma proativa, independentemente de prévia solicitação.
De outro lado, destacou-se que, a teor da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4/2016, a inclusão do empregador no cadastro apenas ocorre depois da decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração por meio do qual foi constatada a exploração de trabalho em condições análogas à de escravo. Essa decisão, por seu turno, demanda prévio processo administrativo no qual asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa ao interessado (CRFB, art. 5º, LV). De se notar, outrossim, que o nome do empregador permanecerá no cadastro por apenas dois anos — e não ad aeternum, o que malferiria a vedação a sanções de caráter perpétuo (CRFB, art. 5º, XLVII, ‘b’) —, período em que será feito um monitoramento para sindicar a regularidade das condições de trabalho em suas relações com empregados.
Salientou-se, ainda, que o cadastro em si não representa sanção ao empregador, limitando-se a dar publicidade a decisões definitivas em processos administrativos relativos a ações fiscais em que for constatada relação abusiva de emprego que se mostre analóga à escravidão. Ao revés, a lista em liça concretiza direitos fundamentais intimamente associados à dignidade da pessoa humana e enaltece os valores sociais do trabalho, inibindo a instrumentalização do indivíduo que é própria à cultura escravocrata que por muitos séculos grassou em nosso país.
Por fim, frisamos que o STJ já havia examinado a legalidade do cadastro em tela e firmado posição no mesmo sentido do entendimento que veio por se consagrar no âmbito da Suprema Corte. Aliás, o Tribunal da Cidadania tinha chegado a dizer que a Portaria que criou esse cadastro (Portaria MTE 540/2004) extrairia seu fundamento de validade diretamente do Texto Constitucional, dispensando, pois, norma legal integradora (algo que o STF não chegou a dizer nesse caso específico, notadamente porque sobreveio a Lei de Acesso à Informação, em 2011, a qual serve de base legal para as Portarias editadas ulteriormente, como é o caso da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4/2016), em que pese também tenha entendido que o art. 913 da CLT serviria de lastro para a sua edição. Confira:
(...) 1. Hipótese em que o Mandado de Segurança foi impetrado contra ato imputado ao Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, referente à determinação de inclusão do nome da impetrante no cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condição análoga à de escravo, instituído pela Portaria 540/2004 do Ministério do Trabalho e Emprego.
(...) 5. No Direito Constitucional contemporâneo, inexiste espaço para a tese de que determinado ato administrativo normativo fere o Princípio da Legalidade, tão-só porque encontra fundamento direto na Constituição Federal. Ao contrário dos modelos constitucionais retórico-individualistas do passado, despreocupados com a implementação de seus mandamentos, no Estado Social brasileiro instaurado em 1988, a Constituição deixa em muitos aspectos de ser refém da lei, e é esta que, sem exceção, só vai aonde, quando e como o texto constitucional autorizar.
6. A empresa defende uma concepção ultrapassada de legalidade, incompatível com o modelo jurídico do Estado Social, pois parece desconhecer que as normas constitucionais também têm status de normas jurídicas, delas se podendo extrair efeitos diretos, sem que para tanto seja necessária a edição de norma integradora.
7. A Constituição é a norma jurídica por excelência, por ser dotada de superlegalidade. No Estado Social, seu texto estabelece amiúde direitos e obrigações de aplicação instantânea e direta, que dispensam a mediação do legislador infraconstitucional. Mesmo que assim não fosse, há regramento infraconstitucional sobre a matéria, diferentemente do que afirma a impetrante.
8. A Portaria MTE 540/2004 concretiza os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da CF), da Valorização do Trabalho (art. 1º, IV, da CF), bem como prestigia os objetivos de construir uma sociedade livre, justa e solidária, de erradicar a pobreza, de reduzir as desigualdades sociais e regionais e de promover o bem de todos (art. 3º, I, III e IV, da CF). Em acréscimo, foi editada em conformidade com a regra do art. 21, XXIV, da CF, que prescreve ser da competência da União "organizar, manter e executar a inspeção do trabalho." Por fim, não se pode olvidar que materializa o comando do art. 186, III e IV, da CF, segundo o qual a função social da propriedade rural é cumprida quando, além de outros requisitos, observa as disposições que regulam as relações de trabalho e promove o bem-estar dos trabalhadores.
9. Some-se a essas normas o disposto no art. 87, parágrafo único, I e II, da Constituição de 1988, pelo qual compete ao Ministro de Estado, entre outras atribuições estabelecidas na Constituição e na lei, exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e "expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos".
10. Além de ter fundamento na Constituição, a Portaria 540/2004 encontra amparo na legislação infraconstitucional. O art. 913 da Consolidação das Leis do Trabalho é claro ao estabelecer que "o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio expedirá instruções, quadros, tabelas e modelos que se tornarem necessários à execução desta Consolidação."
11. Também os Tratados e Convenções internacionais, que, segundo a teoria do Monismo Moderado, ingressam no Direito Brasileiro com status de lei ordinária, veiculam diversas normas de combate ao trabalho em condições degradantes. Em rol exemplificativo, deve-se registrar a Convenção sobre a Escravatura (Decreto 58.562/1966) e as Convenções da Organização Internacional do Trabalho números 29 (Trabalho Forçado e Obrigatório) e 105 (Abolição do Trabalho Forçado), ambas ratificadas pelo Brasil (Decreto 41.721/1957 e Decreto-Lei 58.882/1966, respectivamente).
12. Não há, pois, como falar em violação do Princípio da Legalidade. (...) 20. O trabalho escravo - e tudo o que a ele se assemelhe - configura gritante aberração e odioso desvirtuamento do Estado de Direito, sobretudo em era de valorização da dignidade da pessoa, dos direitos humanos e da função social da propriedade. 21. O Poder Público acha-se obrigado, pela Constituição e pelas leis, não só a punir com rigor o trabalho escravo e práticas congêneres, como a informar à sociedade sobre a sua ocorrência, por meio de mecanismos como o cadastro de empregadores: em síntese, um modelo oposto ao silêncio-conivência da Administração, que até recentemente era a tônica da posição do Estado em temas de alta conflituosidade. (...)” (MS 14.017/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/05/2009, DJe 01/07/2009)
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: