Crime de desacato. Compatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e com a CF/1988. Convencionalidade. Recepção.
Em que pese o STF tenha julgado o tema em meados deste ano de 2020, o acórdão da ADPF 496 foi publicado apenas agora, no final de setembro, e trouxe uma série de importantes lições que merecem ser enfatizadas aqui em nosso InfoEmagis em Pauta.
No centro do debate, o crime de desacato:
Desacato
Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Vamos rememorar.
Na ADPF 496, o Conselho Federal da OAB sustentava que o art. 331 do CP não teria sido recepcionado pela CF de 1988 porquanto se mostraria contrário aos seguintes preceitos fundamentais: (i) liberdade de expressão (CRFB, art. 5º, IX, e art. 220), uma vez que cercearia o debate público sobre a atuação de agentes públicos; (ii) o princípio republicano, o Estado Democrático de Direito e o princípio da igualdade (CRFB, art. 1º, caput e parágrafo único), porque subverteria a titularidade do poder político, colocando o servidor público em condição de superioridade em relação ao cidadão comum; (iii) o princípio da legalidade (CRFB, art. 5º, XXXIX), por encerrar tipo penal excessivamente aberto, que dificultaria a diferenciação entre a mera reclamação ou crítica e o insulto violador da dignidade da função pública.
A par disso, o arguente também apontava que o art. 331 do CP seria inconvencional, na medida em que se chocaria com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos — CADH (Pacto de San José da Costa Rica). Para corroborar sua tese, invocava os seguintes precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): (i) caso Verbitsky v. Argentina, no qual o jornalista Horácio Verbitsky foi condenado na justiça argentina por desacato em razão de ter chamado de “asqueroso” o Ministro Augusto César Belluscio, da Suprema Corte da Justiça daquele país; (ii) caso Palamara Iribarne v. Chile, quando a Corte considerou que o Chile violou o art. 13 da CADH, ao condenar por desacato o escritor Humberto Antônio Palamara Iribarne; e (iii) caso Herrera Ulloa v. Costa Rica, no qual a Corte identificou ter ocorrido violação à liberdade de expressão na condenação de um jornalista costarriquenho por difamação em virtude de artigos publicados em periódico nacional.
Ainda, acenava para a recomendação feita pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que todas as normas nacionais que tipificam crimes de desacato seriam incompatíveis com o art. 13 da CADH, dado que “a aplicação de leis de desacato para proteger a honra dos funcionários públicos que atuam em caráter oficial outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial, do qual não dispõem os demais integrantes da sociedade”.
O Supremo, contudo, não acolheu os argumentos tecidos pelo requerente, julgando improcedente o pedido deduzido na ADPF e firmando tese na linha de que “Foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato”.
“Foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato” (ADPF 496)
Mas quais foram as razões adotadas para fundamentar esse julgamento?
Primeiro, vejamos sobre a inconvencionalidade, é dizer, a alegada contrariedade entre o art. 331 do CP e o art. 13 da CADH.
Não é em vão recordar que a jurisprudência do STF, firmada a partir do RE 466343 (Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, j. 03.12.2008), se mostra uníssona no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos (a) serão equivalentes às emendas constitucionais, se forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros (CRFB, art. 5.º, §3º), ou (b) terão caráter supralegal se não submetidos ao processo legislativo típico das emendas constitucionais (CRFB, art. 5º, § 2º).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, foi adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, tendo entrado em vigor, no plano internacional, em 18 de julho de 1978, na forma do segundo parágrafo de seu art. 74. O Governo brasileiro depositou a carta de adesão a essa convenção em 25 de setembro de 1992 e a incorporou à nossa ordem jurídica interna através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992. Não tendo havido sua aprovação na forma do art. 5º, § 3º, da CRFB, seu status é de norma supralegal, ou seja, superior à legislação infraconstitucional mas inferior às normas constitucionais. Logo, o controle que se faz entre o art. 331 do CP e a CADH é tipicamente de convencionalidade.
Para o STF, contudo, não há qualquer incompatibilidade entre o art. 331 do CP e a CADH.
Sobre a recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, lembrou-se que não vinculam diretamente os Estados-Partes e, destarte, não ensejam responsabilização no plano internacional. Com efeito, os Estados-Partes comprometem-se a cumprir somente as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e, ainda assim, apenas nos casos em que forem partes (art. 68, 1, da Convenção).
Em relação aos precedentes da CIDH indigitados pelo arguente, desconstruiu-se a visão que sobre eles fora externada na petição inicial. O primeiro caso aludido (Verbitsky v. Argentina), esclareceu-se, sequer fora julgado pela CIDH, por ter havido acordo entre as partes. Nos dois outros julgados (Palamara Iribarne v. Chile e Herrera Ulloa v. Costa Rica), em momento algum a CIDH sublinha uma proibição terminante do acionamento do Direito Penal a fim de coibir abusos cometidos sob pretexto de exercício da liberdade de expressão; no último precedente (Herrera Ulloa v. Costa Rica), aliás, nem de desacato se tratava, mas sim de difamação. E, de qualquer modo, a violação ao art. 13 da Convenção reconhecida nesses dois precedentes não foi fruto da mera tipificação em abstrato de crimes contra a honra ou de desacato, e sim da utilização indevida que se fez do Direito Penal como meio para perseguir cidadãos e inibir a liberdade de expressão. A propósito, outra não tem sido a jurisprudência adotada pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
Em passo seguinte, o Supremo rechaçou a pretensa incompatibilidade entre o art. 331 do CP e a CF de 1988.
Fez-se um interessante apanhado sobre a jurisprudência do STF em matéria de liberdade de expressão.
Inicialmente, colocou-se o foco em um primeiro bloco de históricos julgamentos nos quais se percebe o grande prestígio de que goza a liberdade de expressão na jurisprudência do Excelso Pretório:
À luz desse contexto — exercício legítimo da liberdade de expressão em contraposição ao seu exercício abusivo —, o STF contextualizou que o tipo penal do art. 331 do CP está previsto no capítulo dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública e não tutela propriamente a honra do funcionário público, mas sim a própria Administração Pública, cuja respeitabilidade e regular funcionamento são colocados em xeque pela agressão cometida contra o servidor.
De um lado, ao reputar legítima a existência do tipo penal do desacato, considerou que a diversidade de regime jurídico existente entre agentes públicos e particulares, inclusive na seara penal, é uma via de mão dupla: havendo justificativa razoável para tanto, as consequências previstas para os crimes são diversas não somente quando os agentes públicos são os seus autores, mas também quando deles são vítimas.
De outro lado, realçou a necessidade de que o tipo penal do art. 331 do CP seja submetido a interpretação restritiva, de sorte que: (a) o crime deve ser praticado na presença do funcionário público; (b) não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função; (c) é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público; (d) devem ser relevados, portanto, eventuais excessos na expressão da discordância, indignação ou revolta com a qualidade do serviço prestado ou com a atuação do funcionário público.
Para finalizar, transcrevemos a ementa desse relevantíssimo acórdão do STF que ora comentamos e do precedente da Terceira Seção do STJ em que foi adotada a mesma linha de compreensão, tornando a matéria, portanto, sedimentada nos Tribunais Superiores:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CRIME DE DESACATO. ART. 331 DO CP. CONFORMIDADE COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1. Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental em que se questiona a conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como a recepção pela Constituição de 1988, do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato. 2. De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes. 3. A diversidade de regime jurídico – inclusive penal – existente entre agentes públicos e particulares é uma via de mão dupla: as consequências previstas para as condutas típicas são diversas não somente quando os agentes públicos são autores dos delitos, mas, de igual modo, quando deles são vítimas. 4. A criminalização do desacato não configura tratamento privilegiado ao agente estatal, mas proteção da função pública por ele exercida. 5. Dado que os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, deles se exige maior tolerância à reprovação e à insatisfação, limitando-se o crime de desacato a casos graves e evidentes de menosprezo à função pública. 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. Fixação da seguinte tese: “Foi recepcionada pela Constituição de 1988 a norma do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime de desacato”. (ADPF 496, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 23-09-2020 PUBLIC 24-09-2020)
(...) 1. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), denominada Pacto de São José da Costa Rica, sendo promulgada por intermédio do Decreto n. 678/1992, passando, desde então, a figurar com observância obrigatória e integral do Estado. 2. Quanto à natureza jurídica das regras decorrentes de tratados de direitos humanos, firmou-se o entendimento de que, ao serem incorporadas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, portanto, sem a observância do rito estabelecido pelo art. 5º, § 3º, da CRFB, exprimem status de norma supralegal, o que, a rigor, produz efeito paralisante sobre as demais normas que compõem o ordenamento jurídico, à exceção da Magna Carta. Precedentes. 3. De acordo com o art. 41 do Pacto de São José da Costa Rica, as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não ostentam caráter decisório, mas tão somente instrutório ou cooperativo. Desta feita, depreende-se que a CIDH não possui função jurisdicional. 4. A Corte Internacional de Direitos Humanos (IDH), por sua vez, é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, possuindo atribuição jurisdicional e consultiva, de acordo com o art. 2º do seu respectivo Estatuto. 5. As deliberações internacionais de direitos humanos decorrentes dos processos de responsabilidade internacional do Estado podem resultar em: recomendação; decisões quase judiciais e decisão judicial. A primeira revela-se ausente de qualquer caráter vinculante, ostentando mero caráter "moral", podendo resultar dos mais diversos órgãos internacionais. Os demais institutos, porém, situam-se no âmbito do controle, propriamente dito, da observância dos direitos humanos. 6. Com efeito, as recomendações expedidas pela CIDH não possuem força vinculante, mas tão somente "poder de embaraço" ou "mobilização da vergonha". 7. Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já tenha se pronunciado sobre o tema "leis de desacato", não há precedente da Corte relacionada ao crime de desacato atrelado ao Brasil. 8. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se posicionou acerca da liberdade de expressão, rechaçando tratar-se de direito absoluto, como demonstrado no Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão. 9. Teste tripartite. Exige-se o preenchimento cumulativo de específicas condições emanadas do art. 13.2. da CADH, para que se admita eventual restrição do direito à liberdade de expressão. Em se tratando de limitação oriunda da norma penal, soma-se a este rol a estrita observância do princípio da legalidade. 10. Os vetores de hermenêutica dos Direitos tutelados na CADH encontram assento no art. 29 do Pacto de São José da Costa Rica, ao passo que o alcance das restrições se situa no dispositivo subsequente. Sob o prisma de ambos instrumentos de interpretação, não se vislumbra qualquer transgressão do Direito à Liberdade de Expressão pelo teor do art. 331 do Código Penal. 11. Norma que incorpora o preenchimento de todos os requisitos exigidos para que se admita a restrição ao direito de liberdade de expressão, tendo em vista que, além ser objeto de previsão legal com acepção precisa e clara, revela-se essencial, proporcional e idônea a resguardar a moral pública e, por conseguinte, a própria ordem pública. 12. A CIDH e a Corte Interamericana têm perfilhado o entendimento de que o exercício dos direitos humanos deve ser feito em respeito aos demais direitos, de modo que, no processo de harmonização, o Estado desempenha um papel crucial mediante o estabelecimento das responsabilidades ulteriores necessárias para alcançar tal equilíbrio exercendo o juízo de entre a liberdade de expressão manifestada e o direito eventualmente em conflito. 13. Controle de convencionalidade, que, na espécie, revela-se difuso, tendo por finalidade, de acordo com a doutrina, "compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis, lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional." 14. Para que a produção normativa doméstica possa ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma dupla compatibilidade vertical material. 15. Ainda que existisse decisão da Corte (IDH) sobre a preservação dos direitos humanos, essa circunstância, por si só, não seria suficiente a elidir a deliberação do Brasil acerca da aplicação de eventual julgado no seu âmbito doméstico, tudo isso por força da soberania que é inerente ao Estado. Aplicação da Teoria da Margem de Apreciação Nacional (margin of appreciation). 16. O desacato é especial forma de injúria, caracterizado como uma ofensa à honra e ao prestígio dos órgãos que integram a Administração Pública. Apontamentos da doutrina alienígena. 17. O processo de circunspeção evolutiva da norma penal teve por fim seu efetivo e concreto ajuste à proteção da condição de funcionário público e, por via reflexa, em seu maior espectro, a honra lato sensu da Administração Pública. 18. Preenchimento das condições antevistas no art. 13.2. do Pacto de São José da Costa Rica, de modo a acolher, de forma patente e em sua plenitude, a incolumidade do crime de desacato pelo ordenamento jurídico pátrio, nos termos em que entalhado no art. 331 do Código Penal.” (HC 379.269/MS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/05/2017, DJe 30/06/2017)
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: