Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Lei 9.677/1998. CP, art. 273, § 1º-B, I (figura equiparada). Preceito secundário. Inconstitucionalidade.
Para iniciarmos, convém fazermos a leitura integral do art. 273 do Código Penal, embora com uma ênfase maior no seu § 1º-B, I, que terá um destaque especial em nossos comentários deste InfoEmagis:
Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
§ 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;
IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;
V - de procedência ignorada;
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
Relativamente ao delito em testilha — que visa tutelar a saúde pública, sobretudo —, é importante ter presente que a Lei 9.677/1998, dentre outras mudanças, alterou o preceito secundário da norma penal incriminadora, elevando significativamente a pena cominada, que era de 1 a 3 anos de reclusão (e multa) e passou a ser de 10 a 15 anos de reclusão (e multa).
A mesma Lei 9.677/1998, a par disso, criminalizou diversas outras condutas, como a de importar e/ou comercializar (tipo penal misto alternativo) produtos sem registro no órgão de vigilância sanitária competente (ANVISA, em particular) -, que ocorre com grande frequência, especialmente pela facilidade de aquisição de medicamentos em países vizinhos, de fronteiras abertas ao Brasil (Mercosul). E, ao fazê-lo, equiparou essa conduta (imputando-lhes a mesma pena de 10 a 15 anos de reclusão) a outras mais graves - como a falsificação ou adulteração de medicamentos, por exemplo.
Não tardou a surgirem severas críticas a essa elevada pena de 10 a 15 anos, principalmente em relação à corriqueira situação aludida no art. 273, § 1º-B, I, do CP. A comparação com o tráfico de drogas (que também busca tutelar a saúde pública) é inevitável: embora de gravidade inegavelmente maior, tal conduta sujeita-se a uma pena de 5 a 15 anos de reclusão (e multa; art. 33 da Lei 11.343/2006). Veja-se, ademais, que a sanção penal correspondente ao art. 273 é maior do que de crimes como o homicídio (CP, art. 121: 6 a 20 anos), estupro (CP, art. 213: 6 a 10 anos), estupro de vulnerável (CP, art. 217-A: 8 a 15 anos), roubo (4 a 10 anos), extorsão (4 a 10 anos), extorsão mediante sequestro (8 a 15 anos) etc.
O STJ, no ano de 2015, reconheceu a inconstitucionalidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, do CP (perceba que o preceito secundário, na verdade, é um só, para todas as condutas incriminadas no art. 273; a inconstitucionalidade, no entanto, somente foi identificada na sua aplicação às condutas tipificadas no § 1º-B), por manifesta violação ao princípio da proporcionalidade. E, ao fazê-lo, reconheceu a aplicabilidade, às condutas do § 1º-B, do preceito secundário correspondente ao tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006). Na prática, a pena privativa de liberdade, que seria de 10 a 15 anos de reclusão, ficou em 5 a 15 anos de reclusão.
Eis o precedente uniformizador (Corte Especial):
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273, § 1º-B, V, DO CP. CRIME DE TER EM DEPÓSITO, PARA VENDA, PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS DE PROCEDÊNCIA IGNORADA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
1. A intervenção estatal por meio do Direito Penal deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, incumbindo também ao legislador o dever de observar esse princípio como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.
2. É viável a fiscalização judicial da constitucionalidade dessa atividade legislativa, examinando, como diz o Ministro Gilmar Mendes, se o legislador considerou suficientemente os fatos e prognoses e se utilizou de sua margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais.
3. Em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos (CF, art. 5º, LIV), é imprescindível a atuação do Judiciário para corrigir o exagero e ajustar a pena cominada à conduta inscrita no art. 273, § 1º-B, do Código Penal.
4. O crime de ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada é de perigo abstrato e independe da prova da ocorrência de efetivo risco para quem quer que seja. E a indispensabilidade do dano concreto à saúde do pretenso usuário do produto evidencia ainda mais a falta de harmonia entre o delito e a pena abstratamente cominada (de 10 a 15 anos de reclusão) se comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas - notoriamente mais grave e cujo bem jurídico também é a saúde pública.
5. A ausência de relevância penal da conduta, a desproporção da pena em ponderação com o dano ou perigo de dano à saúde pública decorrente da ação e a inexistência de consequência calamitosa do agir convergem para que se conclua pela falta de razoabilidade da pena prevista na lei. A restrição da liberdade individual não pode ser excessiva, mas compatível e proporcional à ofensa causada pelo comportamento humano criminoso.
6. Arguição acolhida para declarar inconstitucional o preceito secundário da norma.
(AI no HC 239.363/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, CORTE ESPECIAL, julgado em 26/02/2015, DJe 10/04/2015)
Recentemente, o STF analisou a questão e também verificou a inconstitucionalidade da aplicação do preceito secundário do art. 273 do CP (10 a 15 anos de reclusão) à conduta incriminada no inciso I do § 1º-B (em caso concreto que envolvia a importação e comercialização de medicamento sem registro na ANVISA). Para resolver o imbróglio, contudo, não determinou a aplicação do preceito secundário do crime de tráfico de drogas (5 a 15 anos de reclusão), e sim a aplicação do antigo preceito secundário do art. 273 do CP, na redação anterior à Lei 9.677/1998 (1 a 3 anos de reclusão), com base no efeito repristinatório próprio à declaração de inconstitucionalidade. Restou superado, portanto, o entendimento esgrimido pela Corte Especial do STJ.
Vale a pena efetuar a leitura da seguinte notícia extraída do site do STF, em que sintetizado esse importantíssimo julgamento:
“O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional dispositivo do Código Penal (CP) que previa punição de 10 a 15 anos para pessoas que importam medicamento sem registro sanitário, em razão da desproporcionalidade da pena. No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 979962, na sessão desta quarta-feira (24), a Corte restabeleceu a redação anterior do artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso I, do CP, na parte que prevê pena de 1 a 3 anos de reclusão, que vale somente para os crimes de importação de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
No caso julgado, com repercussão geral reconhecida (Tema 1003), um homem foi condenado por ter importado irregularmente e comercializado o Prostin VR, medicamento sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), reconhecendo que a pena prevista no CP viola o princípio da proporcionalidade, manteve a sentença que enquadrou o réu na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006, artigo 33), aplicando pena de 3 anos, 9 meses e 15 dias de reclusão, além do pagamento de multa.
Desproporcionalidade
A maioria do Plenário concordou com a desproporcionalidade da pena para a conduta tipificada no dispositivo, equiparável à punição de crimes como estupro de vulnerável, extorsão mediante sequestro e tortura seguida de morte. Por essa razão, os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Luiz Fux e as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber votaram pela inconstitucionalidade do inciso I do dispositivo e pela repristinação (quando um dispositivo volta a vigorar após declarada a inconstitucionalidade da norma que o revogou) da redação original, com reclusão prevista de 1 a 3 anos.
Ajuste do relator
O ministro Barroso havia votado, inicialmente, pela adequação do caso à pena prevista no CP para o crime de contrabando. No entanto, ao final das manifestações, ele ajustou seu voto para seguir o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, quando esclarecido que a repristinação sugerida por ele se aplicava somente ao inciso que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão sanitário competente.
A tese de repercussão geral firmada foi a seguinte:
"É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do artigo 273 do Código Penal, com a redação dada pela Lei 9.677/1998 - reclusão de 10 a 15 anos - à hipótese prevista no seu parágrafo 1º-B, inciso I, que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o preceito secundário do artigo 273, na redação originária - reclusão de um a três anos e multa".
Convém frisar, por fim, que o STF reconheceu a inconstitucionalidade da aplicação da pena de 10 a 15 anos de reclusão – e mandou aplicar a pena anterior, de 1 a 3 anos de reclusão – especificamente à conduta tipificada no inciso I do § 1º-B do art. 273. Resta saber se o STF aplicará o mesmo entendimento a outras condutas do mesmo § 1º-B (lembre-se que o STJ havia declarado a inconstitucionalidade dessa pena de 10 a 15 anos em relação a todas as condutas do § 1º-B, embora determinando a aplicação de uma pena de 5 a 15 anos). Note, por sinal, que o STJ, no julgamento acima ilustrado (de 2015), analisava uma ação penal que envolvia, especificamente, a conduta de ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada, que se engasta no inciso V do § 1º-B.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
É de se recordar que a Lei 9.677/1998 representou uma clara reação do Congresso Nacional ao clamor social que adveio do polêmico caso das “pílulas de farinha” (lotes de pílulas anticoncepcionais que eram compostas, literalmente, por farinha, e que levaram muitas mulheres a uma gravidez indesejada).