Sanções políticas. Condicionamento do despacho aduaneiro de bens importados ao pagamento de diferenças apuradas por arbitramento da autoridade fiscal.
Sanções políticas são proibidas no Direito Tributário. Mas o que são, exatamente, sanções políticas, para esse efeito?
Sanções políticas, nesse terreno, são medidas coercitivas que visam impedir ou restringir o livre exercício de uma atividade econômica até que o contribuinte efetue o pagamento do tributo devido, de forma desproporcional e irrazoável. Três enunciados sumulares do STF bem as ilustram:
“É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.” (Súm. 70 do STF)
“É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” (Súm. 323 do STF)
“Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.” (Súm. 547 do STF)
O STF tem se debruçado sobre diversas medidas adotadas pelo Fisco para dizer se consubstanciam, ou não, sanções políticas.
Assim, o Supremo, de um lado, considerou como caracterizada a ocorrência de sanção política em lei gaúcha que condicionava a expedição de notas fiscais à prestação de fiança, garantia real ou fidejussória por parte do contribuinte, bem como a suspensão realizada por conselho de fiscalização profissional do exercício laboral de seus inscritos por inadimplência de anuidades:
TRIBUTO – ARRECADAÇÃO – SANÇÃO POLÍTICA. Discrepa, a mais não poder, da Carta Federal a sanção política objetivando a cobrança de tributos – Verbetes nº 70, 323 e 547 da Súmula do Supremo. TRIBUTO – DÉBITO – NOTAS FISCAIS – CAUÇÃO – SANÇÃO POLÍTICA – IMPROPRIEDADE. Consubstancia sanção política visando o recolhimento de tributo condicionar a expedição de notas fiscais a fiança, garantia real ou fidejussória por parte do contribuinte. Inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 42 da Lei nº 8.820/89, do Estado do Rio Grande do Sul. (RE 565048, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-197 DIVULG 08-10-2014 PUBLIC 09-10-2014)
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO E ADMINISTRATIVO. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - OAB. SANÇÃO. SUSPENSÃO. INTERDITO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. ANUIDADE OU CONTRIBUIÇÃO ANUAL. INADIMPLÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA DE TRIBUTO. CONTRIBUIÇÃO DE INTERESSE DE CATEGORIA PROFISSIONAL. SANÇÃO POLÍTICA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. LEI 8.906/1994. ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL.
1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que as anuidades cobradas pelos conselhos profissionais caracterizam-se como tributos da espécie contribuições de interesse das categorias profissionais, nos termos do art. 149 da Constituição da República. Precedentes: MS 21.797, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 18.05.2001; e ADI 4.697, de minha relatoria, Tribunal Pleno, DJe 30.03.2017.
2. As sanções políticas consistem em restrições estatais no exercício da atividade tributante que culminam por inviabilizar injustificadamente o exercício pleno de atividade econômica ou profissional pelo sujeito passivo de obrigação tributária, logo representam afronta aos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do devido processo legal substantivo. Precedentes. Doutrina.
3. Não é dado a conselho de fiscalização profissional perpetrar sanção de interdito profissional, por tempo indeterminado até a satisfação da obrigação pecuniária, com a finalidade de fazer valer seus interesses de arrecadação frente a infração disciplinar consistente na inadimplência fiscal. Trata-se de medida desproporcional e caracterizada como sanção política em matéria tributária.
4. Há diversos outros meios alternativos judiciais e extrajudiciais para cobrança de dívida civil que não obstaculizam a percepção de verbas alimentares ou atentam contra a inviolabilidade do mínimo existencial do devedor. Por isso, infere-se ofensa ao devido processo legal substantivo e aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, haja vista a ausência de necessidade do ato estatal.
5. Fixação de Tese de julgamento para efeitos de repercussão geral: “É inconstitucional a suspensão realizada por conselho de fiscalização profissional do exercício laboral de seus inscritos por inadimplência de anuidades, pois a medida consiste em sanção política em matéria tributária.”
6. Recurso extraordinário a que se dá provimento, com declaração de inconstitucionalidade dos arts. 34, XXIII, e 37, §2º, da Lei 8.906/1994. (RE 647885, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2020, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-123 DIVULG 18-05-2020 PUBLIC 19-05-2020)
De outro lado, o mesmo STF entendeu que a previsão legal que autoriza o protesto de CDAs (art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.492/1997, na redação dada pela Lei 12.767/2012), assim como a exigência legal de rigorosa regularidade fiscal para manutenção do registro especial para fabricação e comercialização de cigarros (DL 1.593/1977, art. 2º, II), não representam sanções políticas:
Ementa: Direito tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 9.492/1997, art. 1º, parágrafo único. Inclusão das certidões de dívida ativa no rol de títulos sujeitos a protesto. Constitucionalidade. 1. O parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.492/1997, inserido pela Lei nº 12.767/2012, que inclui as Certidões de Dívida Ativa - CDA no rol dos títulos sujeitos a protesto, é compatível com a Constituição Federal, tanto do ponto de vista formal quanto material. 2. Em que pese o dispositivo impugnado ter sido inserido por emenda em medida provisória com a qual não guarda pertinência temática, não há inconstitucionalidade formal. É que, muito embora o STF tenha decidido, na ADI 5.127 (Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, j. 15.10.2015), que a prática, consolidada no Congresso Nacional, de introduzir emendas sobre matérias estranhas às medidas provisórias constitui costume contrário à Constituição, a Corte atribuiu eficácia ex nunc à decisão. Ficaram, assim, preservadas, até a data daquele julgamento, as leis oriundas de projetos de conversão de medidas provisórias com semelhante vício, já aprovadas ou em tramitação no Congresso Nacional, incluindo o dispositivo questionado nesta ADI. 3. Tampouco há inconstitucionalidade material na inclusão das CDAs no rol dos títulos sujeitos a protesto. Somente pode ser considerada “sanção política” vedada pelo STF (cf. Súmulas nº 70, 323 e 547) a medida coercitiva do recolhimento do crédito tributário que restrinja direitos fundamentais dos contribuintes devedores de forma desproporcional e irrazoável, o que não ocorre no caso do protesto de CDAs. 3.1. Em primeiro lugar, não há efetiva restrição a direitos fundamentais dos contribuintes. De um lado, inexiste afronta ao devido processo legal, uma vez que (i) o fato de a execução fiscal ser o instrumento típico para a cobrança judicial da Dívida Ativa não exclui mecanismos extrajudiciais, como o protesto de CDA, e (ii) o protesto não impede o devedor de acessar o Poder Judiciário para discutir a validade do crédito. De outro lado, a publicidade que é conferida ao débito tributário pelo protesto não representa embaraço à livre iniciativa e à liberdade profissional, pois não compromete diretamente a organização e a condução das atividades societárias (diferentemente das hipóteses de interdição de estabelecimento, apreensão de mercadorias, etc). Eventual restrição à linha de crédito comercial da empresa seria, quando muito, uma decorrência indireta do instrumento, que, porém, não pode ser imputada ao Fisco, mas aos próprios atores do mercado creditício. 3.2. Em segundo lugar, o dispositivo legal impugnado não viola o princípio da proporcionalidade. A medida é adequada, pois confere maior publicidade ao descumprimento das obrigações tributárias e serve como importante mecanismo extrajudicial de cobrança, que estimula a adimplência, incrementa a arrecadação e promove a justiça fiscal. A medida é necessária, pois permite alcançar os fins pretendidos de modo menos gravoso para o contribuinte (já que não envolve penhora, custas, honorários, etc.) e mais eficiente para a arrecadação tributária em relação ao executivo fiscal (que apresenta alto custo, reduzido índice de recuperação dos créditos públicos e contribui para o congestionamento do Poder Judiciário). A medida é proporcional em sentido estrito, uma vez que os eventuais custos do protesto de CDA (limitações creditícias) são compensados largamente pelos seus benefícios, a saber: (i) a maior eficiência e economicidade na recuperação dos créditos tributários, (ii) a garantia da livre concorrência, evitando-se que agentes possam extrair vantagens competitivas indevidas da sonegação de tributos, e (iii) o alívio da sobrecarga de processos do Judiciário, em prol da razoável duração do processo. 4. Nada obstante considere o protesto das certidões de dívida constitucional em abstrato, a Administração Tributária deverá se cercar de algumas cautelas para evitar desvios e abusos no manejo do instrumento. Primeiro, para garantir o respeito aos princípios da impessoalidade e da isonomia, é recomendável a edição de ato infralegal que estabeleça parâmetros claros, objetivos e compatíveis com a Constituição para identificar os créditos que serão protestados. Segundo, deverá promover a revisão de eventuais atos de protesto que, à luz do caso concreto, gerem situações de inconstitucionalidade (e.g., protesto de créditos cuja invalidade tenha sido assentada em julgados de Cortes Superiores por meio das sistemáticas da repercussão geral e de recursos repetitivos) ou de ilegalidade (e.g., créditos prescritos, decaídos, em excesso, cobrados em duplicidade). 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. Fixação da seguinte tese: “O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política.” (ADI 5135, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG 06-02-2018 PUBLIC 07-02-2018)
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. SANÇÃO POLÍTICA. NÃO-PAGAMENTO DE TRIBUTO. INDÚSTRIA DO CIGARRO. REGISTRO ESPECIAL DE FUNCIONAMENTO. CASSAÇÃO. DECRETO-LEI 1.593/1977, ART. 2º, II. 1. Recurso extraordinário interposto de acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que reputou constitucional a exigência de rigorosa regularidade fiscal para manutenção do registro especial para fabricação e comercialização de cigarros (DL 1.593/1977, art. 2º, II). 2. Alegada contrariedade à proibição de sanções políticas em matéria tributária, entendidas como qualquer restrição ao direito fundamental de exercício de atividade econômica ou profissional lícita. Violação do art. 170 da Constituição, bem como dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 3. A orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal rechaça a aplicação de sanção política em matéria tributária. Contudo, para se caracterizar como sanção política, a norma extraída da interpretação do art. 2º, II, do Decreto-lei 1.593/1977 deve atentar contra os seguintes parâmetros: (1) relevância do valor dos créditos tributários em aberto, cujo não pagamento implica a restrição ao funcionamento da empresa; (2) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle do ato de aplicação da penalidade; e (3) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários cujo não-pagamento implica a cassação do registro especial. 4. Circunstâncias que não foram demonstradas no caso em exame. 5. Recurso extraordinário conhecido, mas ao qual se nega provimento. (RE 550769, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 02-04-2014 PUBLIC 03-04-2014)
Preparado o terreno, avancemos para a compreensão de importantíssimo julgado burilado pelo STF em sede de repercussão geral.
Imagine que um contribuinte está importando uma determinada mercadoria da China. Como se sabe, é necessário que o bem importado passe pelo chamado despacho aduaneiro, no qual será exigido o pagamento dos tributos incidentes na importação.
A autoridade fiscal, então, entende que o valor da mercadoria é superior àquele declarado pelo importador. Por conseguinte, arbitra o quantum correspondente ao bem e lança um valor de tributo maior do que aquele que o contribuinte acreditava que deveria ser pago. Além disso, retém a mercadoria enquanto o interessado não efetua o pagamento total do tributo ou depósito de caução (garantia).
E aí? Essa retenção da mercadoria configura sanção política?
O STF, em sede de repercussão geral (Tema 1042), considerou legítima a postura do Fisco em casos tais.
Veja que, em uma análise superficial, a situação se assemelha àquela descrita na Súmula 323 do STF:
“É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” (Súm. 323 do STF)
Não há, porém, na situação analisada, nenhum tipo de “apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. O que há, sim, é um procedimento fiscal necessário à internalização de mercadorias em território nacional — aliás, não custa lembrar que a internalização de mercadorias sem o pagamento dos tributos devidos configura o crime de descaminho (CP, art. 334). O Fisco, portanto, não apreende nenhuma mercadoria: a internalização dessa mercadoria é que depende do cumprimento das obrigações tributárias pelo contribuinte. Com efeito, o inadimplemento dessas obrigações fiscais inviabiliza o desembaraço aduaneiro e afasta a possibilidade de internalização da mercadoria. Por sinal, é importante enfatizar que essa sistemática de condicionar o desembaraço aduaneiro ao pagamento dos tributos devidos com a importação tem por finalidade não apenas evitar sonegação fiscal como também, e sobretudo, proteger a indústria nacional, algo enfatizado pelo Constituinte de 1988 no art. 237 da Carta Maior:
Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.
Com base nessa linha de raciocínio, o STF firmou a seguinte tese em repercussão geral:
“É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença tributária apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal” (RE 1090591, Tema 1042)
De resto, vale lembrar que o STF já havia reconhecido a higidez constitucional do condicionamento do desembaraço da mercadoria importada à comprovação de recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tendo inclusive editado Súmula Vinculante nesse sentido:
“Na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro.” (SV 48)
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
Na prática, é muito comum a utilização dos termos despacho aduaneiro e desembaraço aduaneiro como sinônimos. Embora correlatos, não se confundem. Despacho aduaneiro é o procedimento de verificação do cumprimento das exigências legais para a entrada ou a saída de mercadorias do território brasileiro. Desembaraço aduaneiro, de seu turno, é o último ato desse procedimento — ou seja, a efetiva liberação da entrada ou saída do bem do território nacional.
Conforme prevê expressamente, aliás, o Decreto 6.759/2009.
RE 193817. Súm. 70 do STF.
Súm. 323 do STF.
Súm. 547 do STF.
RE 565048.
RE 647885.
ADI 5135.
RE 550769.