STF, PET 981-AgR. Prerrogativa de foro. CF, art. 102, I, ‘b’. Parlamentar federal. “Mandatos cruzados”. Deputado federal. Senador. Ausência de solução de continuidade.
Imagine que certo deputado federal vinha sendo investigado, em inquérito que tramita sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, ‘b’), por supostas irregularidades no uso da Cota para Exercício de Atividade Parlamentar, verba pública diretamente relacionada com o exercício do mandato.
Agora, imagine que esse deputado federal não se candidatou para a reeleição para a Câmara dos Deputados, e, sim, para o mandato de senador, tendo sido eleito. É dizer, era deputado federal à época dos fatos investigados, e, atualmente, é senador da república, tendo concluído o primeiro mandato (deputado federal) e imediatamente assumido o segundo mandato (senador).
Nessa situação, continuará sendo da competência do Supremo supervisionar o inquérito policial e processar/julgar eventual ação penal, mesmo estando o investigado, atualmente, no cargo de senador, e não mais no de deputado federal, ocupado à época dos fatos?
Sabemos que o STF, em importantíssima guinada jurisprudencial, fixou, no julgamento de Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, duas importantíssimas teses acerca da nova compreensão da Corte sobre a prerrogativa de foro:
1º) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas;
2º) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Vale a releitura desse histórico precedente:
Ementa: Direito Constitucional e Processual Penal. Questão de Ordem em Ação Penal. Limitação do foro por prerrogativa de função aos crimes praticados no cargo e em razão dele. Estabelecimento de marco temporal de fixação de competência. I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. 4. A orientação aqui preconizada encontra-se em harmonia com diversos precedentes do STF. De fato, o Tribunal adotou idêntica lógica ao condicionar a imunidade parlamentar material – i.e., a que os protege por 2 suas opiniões, palavras e votos – à exigência de que a manifestação tivesse relação com o exercício do mandato. Ademais, em inúmeros casos, o STF realizou interpretação restritiva de suas competências constitucionais, para adequá-las às suas finalidades. Precedentes. II. Quanto ao momento da fixação definitiva da competência do STF 5. A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais – do STF ou de qualquer outro órgão – não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Precedentes. III. Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. 8. Como resultado, determinação de baixa da ação penal ao Juízo da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, em razão de o réu ter renunciado ao cargo de Deputado Federal e tendo em vista que a instrução processual já havia sido finalizada perante a 1ª instância. (AP 937 QO, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-265 DIVULG 10-12-2018 PUBLIC 11-12-2018)
Vê-se, com clareza, que o Supremo passou a adotar nova linha interpretativa em torno da prerrogativa de foro, bem mais restritiva do que a compreensão que vinha sendo seguida até o julgamento da AP 937.
Voltando, agora, para a indagação que fizemos ao início, poder-se-ia pensar, diante dessa “redução teleológica” do alcance da prerrogativa de foro, que o STF não mais teria competência mercê de o investigado ter deixado o mandato que ocupava à época das supostas irregularidades no emprego da verba pública.
Não foi nesse rumo, contudo, o entendimento firmado pelo STF em caso concreto que retrata a mesma situação que expusemos ao início destes nossos comentários.
Com efeito, ao julgar agravo regimental interposto na Petição 981 (relacionada ao Inquérito 4846), o Supremo considerou que, a despeito do quanto decidido na AP 937, o foro por prerrogativa de função alcança os “mandatos cruzados” de parlamentar federal (deputado federal que é eleito, no mandato imediatamente subsequente, como senador, ou vice-versa). Pontuou-se, nesse sentido, que a competência do Supremo alcança os congressistas federais no exercício de mandato em casa parlamentar diversa daquela em que fora consumada a conduta delitiva em apuração.
É importante notar que, havendo interrupção ou término do mandato, sem que o investigado ou acusado tenha sido novamente eleito para os cargos de deputado federal ou senador, o declínio da competência é medida inafastável. Caso, porém, o deputado federal seja reeleito para o mesmo cargo ou, então, seja eleito como senador — sem solução de continuidade, ou seja, para o mandato imediatamente subsequente —, ou vice-versa (senador que se elege como deputado federal), haverá a manutenção da prerrogativa de foro referente a fato concernente ao mandato parlamentar federal anterior.
Para concluir, transcrevemos a certidão de julgamento da PET 981-AgR (o acórdão ainda não foi lavrado):
“O Tribunal, por maioria, deu provimento ao agravo regimental, para assentar a manutenção da competência criminal originária do Supremo Tribunal Federal em hipóteses como a dos presentes autos, em que verificada a existência de "mandatos cruzados" exclusivamente de parlamentar federal, ou seja, de parlamentar investido, sem solução de continuidade, em mandato em casa legislativa diversa daquela que originalmente deu causa à fixação da competência originária (art. 102, I, "b", da Constituição Federal), nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Rosa Weber (Relatora), Roberto Barroso e Marco Aurélio. Plenário, Sessão Virtual de 30.4.2021 a 11.5.2021.”
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: