Tribunal de Contas. Declaração de inconstitucionalidade de lei. Impossibilidade. Súmula 347 do STF. Superação. STF, MS 35.410.
A Lei 13.464/2017 instituiu o pagamento do bônus de eficiência e produtividade aos servidores da carreira Tributária e Aduaneira da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho.
No seu papel de “apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão,bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório” (CRFB, art. 71, III), o Tribunal de Contas da União glosou aposentadorias e pensões que incorporaram o valor dessa gratificação, em que pese a lei assim o determinasse. O motivo? Entendeu o TCU que a lei, no ponto, seria inconstitucional porquanto não teria havido incidência de contribuição previdenciária sobre tais valores. Noutras palavras, a lei, ao prever a incorporação aos proventos de inatividade de parcela remuneratória sobre a qual não incidira contribuição previdenciária, seria incompatível com a Constituição Federal.
Ao declarar a inconstitucionalidade da lei, o Tribunal de Contas da União invocou o entendimento consagrado na Súmula 347 do STF, assim redigida:
“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” (Súm. 347 do STF)
Esse verbete sumular, no entanto, foi aprovado em 13 de dezembro em 1963, antes mesmo da EC 16/1965, que introduziu o controle abstrato de constitucionalidade no Brasil. Daí a dúvida: ainda pode ser aplicado?
A resposta é negativa, consoante recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
É importante ter presente que, quando editada a Súmula 347, a legitimidade para deflagrar o controle abstrato de constitucionalidade repousava apenas sobre os ombros do Procurador-Geral da República. Com a Constituição de 1988, o cenário mudou completamente, com notável ampliação dos legitimados para o ajuizamento desse tipo de ação (CRFB, art. 103).
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
O que essa questão tem a ver com a Súmula 347 do STF? É que, para parte da doutrina, essa ampliação do universo de legitimados para a deflagração do processo de controle abstrato de constitucionalidade conduziu à superação do entendimento trazido nesse verbete, na medida em que a possibilidade de o Tribunal de Contas — o qual, vale lembrar, não é órgão do Poder Judiciário, e, sim, órgão auxiliar do Poder Legislativo, de natureza eminentemente administrativa — declarar, sponte propria, a inconstitucionalidade de uma lei faria pouco caso de todo um sistema de controle abstrato de constitucionalidade engendrado pela Constituição de 1988, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal (CRFB, art. 102, I). Noutras palavras, caso o Tribunal de Contas repute inconstitucional certa lei, deve provocar algum dos legitimados ao controle abstrato de constitucionalidade para que avalie a pertinência do ajuizamento de uma ADI, ADC ou ADPF, ao invés de simplesmente declará-la inconstitucional, por decisão própria.
Sobre o tema, vale transcrever trecho de decisão monocrática exarada pelo Min. Gilmar Mendes no MS 25.888:
Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, segundo o qual "o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público". A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988.
O Supremo, no julgamento de uma série de mandados de segurança impetrados por entidades representativas de servidores da Receita Federal e da Auditoria-Fiscal do Trabalho (lembre-se que o STF detém a competência originária para processar e julgar mandado de segurança contra ato do TCU — art. 102, I, ‘d’, da CRFB), consagrou o entendimento de que a Súmula 347 do STF não subsistiu ao advento da Constituição de 1988.
O Min. Alexandre de Moraes — cujo voto foi seguido pela ampla maioria dos integrantes do plenário — ressaltou que o TCU é um órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, com competência funcional estabelecida no artigo 71 da CRFB, não possuindo função jurisdicional.
Ponderou, além disso, que a Corte de Contas, ao declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 13.464/2017 aos casos concretos submetidos à sua apreciação, acaba, na prática, por retirar a eficácia da lei e sinalizar aos órgãos da administração pública federal que deixem de aplicá-la aos demais casos idênticos, extrapolando os efeitos concretos e entre as partes de suas decisões. Desse modo, estaria usurpando competência exclusiva do STF.
Afora (a) exercer função jurisdicional de que não dispõe e (b) usurpar competência exclusiva do Supremo, o TCU, ao assim agir, (c) também menoscaba o trabalho do Poder Legislativo, responsável pela produção de normas jurídicas de caráter primário.
Ter-se-ia, assim, o que o Ministro chamou de “triplo desrespeito” à Constituição.
Em conclusão, ante a superação da Súmula 347 do STF, é correto afirmar que o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, NÃO pode declarar a constitucionalidade de leis.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: