Competência. Utilização indevida de marca de renome para a prática de fraude via internet. Transnacionalidade. Art. 109, V, da CRFB. Requisitos. Não preenchimento.
Estamos habituados a enxergar, nas redes sociais, a utilização indevida de marcas de terceiros para fins de praticar “golpes” contra as pessoas mais “desavisadas”, digamos assim.
E se os tais “golpes” estiverem sendo praticadas por pessoas situadas em território estrangeiro, mas causando prejuízos a vítimas em solo pátrio (ou vice-versa): a competência para processar e julgar o crime será da Justiça Federal? Noutras palavras, será aplicável o art. 109, V, da CRFB?
CRFB
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
A Terceira Seção do STJ analisou, recentemente, essa situação.
No caso concreto, o juiz de Santana de Parnaíba (SP), vinculado ao TJ/SP, encaminhou os autos para a Justiça Federal por reputar incidente o art. 109, V, da CRFB. O juiz federal, por sua vez, entendeu que os crimes em apuração não afetavam interesses da União e que o uso da internet, por si só, não seria suficiente para justificar a competência da Justiça Federal. Por isso, suscitou conflito negativo de competência, cuja definição, como sabemos, toca, em casos tais, ao STJ (CRFB, art. 105, I, ‘d’).
Para o Tribunal da Cidadania, não havia elementos a justificar a competência da Justiça Federal para processar e julgar o caso.
Nesse sentido, lembrou-se que o STF, no RE 628.624, decidiu que o acionamento do art. 109, V, da CRFB depende do preenchimento de três requisitos essenciais e cumulativos: (a) que o fato esteja previsto como crime no Brasil e no exterior; (b) que o Brasil seja signatário de tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir o delito; e (c) que a conduta tenha ao menos começado no Brasil e o resultado tenha – ou devia ter – ocorrido no exterior, ou reciprocamente (transnacionalidade da conduta e/ou do resultado).
Confira:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME PREVISTO NO ARTIGO 241-A DA LEI 8.069/90 (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE). COMPETÊNCIA. DIVULGAÇÃO E PUBLICAÇÃO DE IMAGENS COM CONTEÚDO PORNOGRÁFICO ENVOLVENDO CRIANÇA OU ADOLESCENTE. CONVENÇÃO SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA. DELITO COMETIDO POR MEIO DA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES (INTERNET). INTERNACIONALIDADE. ARTIGO 109, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL RECONHECIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. À luz do preconizado no art. 109, V, da CF, a competência para processamento e julgamento de crime será da Justiça Federal quando preenchidos 03 (três) requisitos essenciais e cumulativos, quais sejam, que:
a) o fato esteja previsto como crime no Brasil e no estrangeiro;
b) o Brasil seja signatário de convenção ou tratado internacional por meio do qual assume o compromisso de reprimir criminalmente aquela espécie delitiva; e
c) a conduta tenha ao menos se iniciado no Brasil e o resultado tenha ocorrido, ou devesse ter ocorrido no exterior, ou reciprocamente.
2. O Brasil pune a prática de divulgação e publicação de conteúdo pedófilo-pornográfico, conforme art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente.
3. Além de signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, o Estado Brasileiro ratificou o respectivo Protocolo Facultativo. Em tais acordos internacionais se assentou a proteção à infância e se estabeleceu o compromisso de tipificação penal das condutas relacionadas à pornografia infantil.
4. Para fins de preenchimento do terceiro requisito, é necessário que, do exame entre a conduta praticada e o resultado produzido, ou que deveria ser produzido, se extraia o atributo de internacionalidade dessa relação.
5. Quando a publicação de material contendo pornografia infanto-juvenil ocorre na ambiência virtual de sítios de amplo e fácil acesso a qualquer sujeito, em qualquer parte do planeta, que esteja conectado à internet, a constatação da internacionalidade se infere não apenas do fato de que a postagem se opera em cenário propício ao livre acesso, como também que, ao fazê-lo, o agente comete o delito justamente com o objetivo de atingir o maior número possível de pessoas, inclusive assumindo o risco de que indivíduos localizados no estrangeiro sejam, igualmente, destinatários do material. A potencialidade do dano não se extrai somente do resultado efetivamente produzido, mas também daquele que poderia ocorrer, conforme própria previsão constitucional.
6. Basta à configuração da competência da Justiça Federal que o material pornográfico envolvendo crianças ou adolescentes tenha estado acessível por alguém no estrangeiro, ainda que não haja evidências de que esse acesso realmente ocorreu.
7. A extração da potencial internacionalidade do resultado advém do nível de abrangência próprio de sítios virtuais de amplo acesso, bem como da reconhecida dispersão mundial preconizada no art. 2º, I, da Lei 12.965/14, que instituiu o Marco Civil da Internet no Brasil.
8. Não se constata o caráter de internacionalidade, ainda que potencial, quando o panorama fático envolve apenas a comunicação eletrônica havida entre particulares em canal de comunicação fechado, tal como ocorre na troca de e-mails ou conversas privadas entre pessoas situadas no Brasil. Evidenciado que o conteúdo permaneceu enclausurado entre os participantes da conversa virtual, bem como que os envolvidos se conectaram por meio de computadores instalados em território nacional, não há que se cogitar na internacionalidade do resultado.
9. Tese fixada: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes consistentes em disponibilizar ou adquirir material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (arts. 241, 241-A e 241-B da Lei nº 8.069/1990) quando praticados por meio da rede mundial de computadores”.
10. Recurso extraordinário desprovido. (RE 628624, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-062 DIVULG 05-04-2016 PUBLIC 06-04-2016)
Na espécie, contudo, não havia elementos probatórios que permitissem afirmar que as condutas em apuração são criminalizadas nos países em que a mensagem foi visualizada (até porque esses locais não estavam identificados nos autos). Igualmente, indicou-se que o Brasil não é signatário de tratado internacional em direito comercial que o obrigue a criminalizar violações contra o registro de marcas.
Sobre a tipificação das condutas, o STJ sinalizou que, antes do objetivo de cometer crimes contra a marca, o que os fraudadores pretendiam era induzir os consumidores a acreditar em falsas promoções da grife de joias (empresa cuja marca estava sendo indevidamente utilizada na fraude), com a verdadeira finalidade de obter vantagem ilícita. Desse modo, a conduta praticada consubstanciaria o crime de estelionato, que absorveria os crimes da Lei 9.279/1996 (princípio da consunção), à luz da mesma ratio que inspira a Súmula 17 do STJ.
“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.” (Súm. 17 do STJ)
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: