Crime de obstrução de justiça. Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Possibilidade de configuração tanto na fase inquisitorial quanto no curso da ação penal. “Embaraçar”. Crime material. STJ, REsp 1817416.
Falaremos sobre dois importantes aspectos relacionados ao chamado “crime de obstrução de justiça”, disposto no art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Organizados:
Lei 12.850/13
Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
Para fins didáticos, trabalharemos sob a forma de perguntas e respostas.
1ª) A expressão “investigação de infração penal” abarca, também, a conduta de impedir ou, de qualquer forma, embaraçar ação penal já em curso?
Sim, abarca, consoante tem decidido o STJ.
Para o Tribunal da Cidadania, caso o legislador quisesse limitar o alcance do tipo penal em foco à fase pré-processual, teria utilizado a expressão “inquérito policial”, e não “investigação de infração penal”, que deve ser interpretada no sentido de “persecução penal”. Ademais, as investigações prolongam-se durante toda a persecução criminal, que abrange tanto a fase inquisitorial quanto a ação penal. Para confirmar essa afirmação, basta lembrar que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar inquérito e ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal. Não fosse o bastante, ponderou-se que seria totalmente desarrazoado punir a obstrução das investigações do inquérito de modo mais severo do que a obstrução da ação penal.
Logo, quem impede ou, de qualquer forma, embaraça ação penal já em curso também pode responder pelo crime de obstrução de justiça.
2º) O crime de obstrução de justiça, na modalidade “embaraçar”, é formal ou material?
Trata-se de crime material, segundo decidiu o STJ.
A doutrina é uniforme ao apontar que a obstrução de justiça, na modalidade “impedir”, configura crime material.
Bem controversa, no entanto, é a questão atinente à sua prática na modalidade “embaraçar”.
Cleber Masson e Vinícius Marçal, ao mesmo tempo em que defendem se estar, nessa hipótese, diante de crime formal, expõem com precisão as correntes doutrinárias que existem acerca dessa controvérsia:
"2.9 Consumação
A consumação do núcleo do tipo impedir se perfaz com a efetiva cessação da persecução penal, sendo, portanto, crime material; por seu turno, na modalidade de embaraçar, o delito é formal (de consumação antecipada ou de resultado cortado), porquanto restará consumado se, de qualquer modo, o sujeito atrapalhar ou perturbar o andamento normal da investigação ou do processo, ainda que não alcance a sua interrupção propriamente dita. Mas não basta, obviamente, "a simples manifestação de vontade ou a intenção do agente de embaraçar ou dificultar a realização da investigação, sob pena de punir simples 'intenções: aliás, de difícil comprovação'.
2.10 Tentativa
Para alguns (1.ª corrente), a tentativa é admissível em qualquer dos seus núcleos, embora seja ela mais difícil de se concretizar no que tange ao verbo embaraçar, porquanto o elemento normativo "de qualquer forma" amplia sobremaneira a possibilidade de consumação.
Para outros (2.ª corrente), contudo, a tentativa é admissível apenas quanto ao núcleo impedir - cuja fase executória pode ser fracionada -, sendo impossível na conduta de unissubsistente embaraçar.
Ainda, há quem entenda (3.ª corrente) que o tipo penal em caracteriza um crime de atentado ou de empreendimento, sendo, pois, incompatível com a forma tentada. Estes crimes são aqueles em que a lei pune de forma idêntica a consumação e a tentativa, isto é, não há diminuição pena em face do conatus. Para esta corrente, o núcleo embaraçar constituiria, por si impedir. Portanto, se o agente tenta impedir uma investigação infração penal que envolva organização criminosa, mas não logra êxito por circunstâncias alheias à sua vontade, já se poderia vislumbrar uma consumada ação de embaraçamento. (in Crime Organizado, 4ª Edição revista, atualizada e ampliada – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO. 2018. fls. 121/122)
O STJ, entrementes, entendeu que a adoção da corrente que classifica o delito como crime material se explica porque o verbo “embaraçar” atrai um resultado, ou seja, uma alteração do seu objeto. Na hipótese normativa, o objeto é a investigação que, como já dito, pode se dar na fase de inquérito ou na instrução da ação penal. É diizer, haverá embaraço à investigação se algum resultado, ainda que momentâneo e reversível, for constatado.
Para reforçar o seu ponto de vista, acenou para o fato de que o STF, no Inquérito 4506, decidiu pelo recebimento de denúncia por tentativa do crime de obstrução de justiça (embora tendo o STJ reconhecido que, naquele caso, o delito fora praticado de outra forma).
Eis o julgado do Excelso Pretório ao qual acenou o STJ:
Ementa: Direito Penal e processual penal. Ação Penal. Corrupção Passiva e Tentativa de Obstrução à Investigação de Organização Criminosa. Materialidade e Indícios Suficientes de Autoria. Recebimento da Denúncia. (...) 9. A presença de indícios de materialidade e autoria pela tentativa de embaraço às investigações de organização criminosa está caracterizada: (i) pela transcrição de diálogo travado entre Aécio Neves da Cunha e Joesley Batista, em que o denunciado brada a necessidade de anistiar o caixa dois e de substituir o então Ministro da Justiça, com o intuito de obter maior controle sobre a Polícia Federal; (ii) ligação telefônica em que o denunciado conversa com outro Senador sobre a necessidade de substituição do Ministro da Justiça. 10. Embora a atuação no processo legislativo seja atividade lícita, o modo de proceder do denunciado indica que sua atuação tinha por objetivo específico embaraçar as investigações relacionadas à “Operação Lava Jato”. III. Conclusão 11. Rejeição das preliminares e recebimento integral da denúncia. (Inq 4506, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/04/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 03-09-2018 PUBLIC 04-09-2018)
Por fim, apenas para exercer um juízo crítico sobre a posição esgrimida pelo STJ nesse julgado que ora comentamos, registramos que, a nosso sentir, mais acertada é a corrente segundo a qual o crime de obstrução de justiça é um crime formal ou de consumação antecipada, de modo que se mostraria desnecessária a comprovação de que da conduta de “embaraçar, de qualquer forma, a investigação de infração penal” tenha resultado qualquer espécie de resultado naturalístico.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: