Decadência. Art. 103 da Lei 8.213/1991. Revisão do ato de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício previdenciário. Lei 13.846/2019. Inconstitucionalidade. ADI 6096.
Há duas semanas comentamos aqui no InfoEmagis em Pauta o relevante julgamento pelo STJ, em sede de recurso especial repetitivo, do Tema 975 (REsp 1.644.191), no qual o Tribunal da Cidadania definiu que se aplica o prazo decadencial de dez anos estabelecido no art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 às hipóteses em que a questão controvertida não foi apreciada no ato administrativo de análise de concessão de benefício previdenciário.". Uma importante derrota para os segurados, digamos assim.
Hoje, noticiamos um autêntico bálsamo que o STF (ADI 6096) derrama sobre os beneficiários do RGPS ao reputar inconstitucional o art. 24 da Lei 13.846/2019, no que havia alterado o art. 103 da Lei 8.213/1991 para deixar claro que a decadência seria aplicável inclusive aos casos de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício — algo que o Supremo, conforme veremos a seguir, considerou atentatório ao núcleo essencial do direito fundamental à previdência social (CRFB, art. 6º).
Vamos, uma vez mais, nos situar melhor na matéria a fim de bem compreendê-la.
A Lei 8.213/1991, em sua redação original, não trazia a previsão de decadência para que o segurado ou dependente buscasse a revisão do ato de concessão do seu benefício. Somente com a MP 1.523/1997, depois convolada na Lei 9.528/1997, é que se assistiu ao nascimento de um prazo decadencial de 10 anos para essa hipótese (prazo que chegou a ser diminuído para 5 anos, pela Lei 9.711/1998, mas que tornou ao patamar de 10 anos após a alteração imposta pela Lei 10.839/2004).
Discutiu-se, de logo, a constitucionalidade da instituição do prazo decadencial para a revisão do ato de concessão do benefício. Aqui, apesar de vozes contrárias na doutrina, a jurisprudência, de forma uníssona, reconheceu que não há inconstitucionalidade na criação de tal prazo decadencial, basicamente a partir de dois principais argumentos: (a) a decadência tem sustentação no princípio da segurança jurídica, pilar de nosso Estado Democrático de Direito; (b) o intervalo de tempo eleito pelo legislador é bastante razoável (10 anos) e prestigia o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.
Questionou-se, também, a aplicabilidade desse prazo decadencial a benefícios concedidos anteriormente ao advento da MP 1.523/1997 (convertida na Lei 9.528/1997). Nesse aspecto, era robusto o entendimento jurisprudencial (inclusive do STJ) no sentido da impossibilidade de aplicação do novo prazo decadencial a benefícios concedidos antes da vigência da MP 1.523/1997, ao argumento de que envolveria a retroatividade da nova lei. Não obstante, o STF pacificou o entendimento de que, afora ser constitucional a instituição de tal prazo decadencial para a revisão do ato de concessão do benefício previdenciário, inexiste um pretenso direito adquirido à inexistência desse prazo decadencial, razão pela qual pode ser aplicado inclusive a benefícios concedidos antes da vigência da MP 1.523/1997, hipótese em que a sua contagem, contudo, somente iniciará depois dessa vigência, mais precisamente em 1º de agosto de 1997 (segundo definiu o STF).
“Não há direito adquirido à inexistência de prazo decadencial para fins de revisão de benefício previdenciário. Ademais, aplica-se o lapso decadencial de dez anos para o pleito revisional a contar da vigência da Medida Provisória 1.523/97 aos benefícios originariamente concedidos antes dela. [...] Frisou-se que, no tocante ao direito à obtenção de benefício previdenciário, não haveria prazo algum. Isso significaria que esse direito fundamental poderia ser exercido a qualquer tempo, sem que se atribuísse consequência negativa à inércia do beneficiário. Por sua vez, a decadência instituída pela medida provisória em análise atingiria apenas a pretensão de rever benefício previdenciário. [...] Com base nessas premissas, afastou-se eventual inconstitucionalidade na criação, por lei, de prazo decadencial razoável para o questionamento de benefícios já reconhecidos.” RE 626489/SE, rel. Min. Roberto Barroso, 16/10/2013.
“1. O direito à previdência social constitui direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição, não deve ser afetado pelo decurso do tempo. Como consequência, inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário. 2. É legítima, todavia, a instituição de prazo decadencial de dez anos para a revisão de benefício já concedido, com fundamento no princípio da segurança jurídica, no interesse em evitar a eternização dos litígios e na busca de equilíbrio financeiro e atuarial para o sistema previdenciário. 3. O prazo decadencial de dez anos, instituído pela Medida Provisória 1.523, de 28/06/1997, tem como termo inicial o dia 1º de agosto de 1997, por força de disposição nela expressamente prevista. Tal regra incide, inclusive, sobre benefícios concedidos anteriormente, sem que isso importe em retroatividade vedada pela Constituição. 4. Inexiste direito adquirido a regime jurídico não sujeito a decadência.” (RE 626489, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERALMÉRITO DJe-184 DIVULG 22/09/2014 PUBLIC 23/09/2014).
“Incide o prazo de decadência do art. 103 da Lei n. 8.213/1991, instituído pela MP n. 1.523-9/1997, convertida na Lei n. 9.528/1997, no direito de revisão dos benefícios concedidos ou indeferidos anteriormente a esse preceito normativo, com o termo a quo a contar da vigência da MP.” REsp 1.309.529-PR, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/11/2012. (Primeira Seção).
A par disso, discutia-se se esse prazo decadencial, antes do advento da Lei 13.846/2019, seria aplicável também em casos de indeferimento (ou cessação) de benefícios, ou apenas para a revisão do ato de concessão. Veja-se a redação do art. 103, caput, da Lei 8.213/91, na redação anterior à Lei 13.846/19:
Lei 8.213/91
Art. 103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.
A TNU chegou a sumular o entendimento de que a decadência seria aplicável também para os casos de indeferimento de benefícios (Súmula 64); no entanto, cancelou esse verbete e editou outro (Súmula 81) em sentido diametralmente oposto, para ditar que a decadência não incide em casos de indeferimento e cessação de benefícios.
“Não incide o prazo decadencial previsto no art. 103, caput, da Lei n. 8.213/91, nos casos de indeferimento e cessação de benefícios, bem como em relação às questões não apreciadas pela Administração no ato da concessão. ” (Súm. 81 da TNU).
Nada obstante, a Lei 13.846/2019 (mais precisamente, a MP 871/2019, que nela se converteu) previu expressamente que essa decadência decenal deveria ser aplicada não apenas para a revisão do ato de concessão, mas também para a revisão do ato de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício. Confira-se a nova redação legal:
Lei 8.213/91
Art. 103. O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:
I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou
II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.
Após a Lei 13.846/2019, portanto, não havia mais margem interpretativa para dizer que a decadência não se aplicaria aos casos de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefícios previdenciários. Única “salvação” que restava aos segurados era, portanto, eventual reconhecimento da inconstitucionalidade da nova redação dada ao art. 103 da LBPS.
E foi nessa última trincheira dos segurados que sobreveio o bálsamo prenunciado.
Por apertadíssima maioria (6 x 5), o Supremo seguiu o voto do Relator (Min. Edson Fachin).
Lembrou-se que, no RE 626489 (acima exposto), o STF considerou constitucional a instituição do prazo decadencial por envolver a revisão do ato de concessão do benefício, ou seja, discussões sobre a gradação econômica do benefício, e não o próprio direito ao benefício previdenciário, cujo reconhecimento estaria imune à incidência desse prazo inercial. A Lei 13.846/2019, contudo, ao tentar estender o prazo decadencial também aos casos de indeferimento, cancelamento ou cessação de benefícios, acabou por arrostar o próprio fundo do direito fundamental à previdência social (CRFB, art. 6º), introduzindo excessiva restrição que veio por malferir o seu núcleo essencial.
Em arremate, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 24 da Lei 13.846/2019, tornou a viger a anterior redação do art. 103 da Lei 8.213/1991, vazado, repise-se, nos seguintes termos:
Lei 8.213/91
Art. 103. É de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âmbito administrativo.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: