Multa diária. Terceiros. Possibilidade. Analogia. Poder geral de cautela. Teoria dos poderes implícitos. Bloqueio de valores (BACEN-JUD). Inscrição em Dívida Ativa. REsp 1.568.445 (Inf. 677 do STJ).
É sabido que o CPP não traz qualquer regra expressa que autorize o juiz criminal a fixar multa diária (astreintes) para compelir terceiros ao cumprimento de suas determinações.
A despeito disso, a Terceira Seção do STJ unifirmizou o entendimento das suas Turmas (Quinta e Sexta) no sentido de que essa medida judicial é plenamente admissível; mais do que isso, entendeu-se que o próprio juiz criminal pode acionar a ferramenta BACEN-JUD para o bloqueio de valores necessários à satisfação de multa que tenha sido aplicada mercê do descumprimento de suas ordens por terceiros.
Como se chegou a essa orientação? Qual a fundamentação jurídica utilizada para legitimar essa postura do juiz criminal?
O STJ trabalhou com três argumentos centrais:
1º) possiblidade da aplicação ao processo penal, por analogia, de regras do Código de Processo Civil: a partir da válvula aberta pelo art. 3º do CPP, avulta a possibilidade de o juiz criminal valer-se das regras do CPC que versam sobre a fixação de multas (astreintes) para que terceiros cooperem com a investigação e a instrução processual. Ademais, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) também contempla a fixação e aplicação de multas para assegurar o cumprimento de decisões judiciais;
2º) poder geral de cautela: o juiz criminal, de uma maneira geral, também detém poder geral de cautela, à semelhança do juiz cível. Por isso, pode adotar medidas necessárias para assegurar o cumprimento de decisões relacionadas à investigação ou à instrução processual. Somente quando se cuidar de medidas cautelares de caráter pessoal, que afetem o direito de ir e vir do cidadão, é que não se pode adotar providências que não estejam expressamente previstas em lei;
3º) teoria dos poderes implícitos (implied powers): se ao juiz é outorgado o dever-poder de assegurar o regular andamento da investigação criminal, com respeito aos direitos fundamentais, bem como a higidez da instrução probatória, devem ser assegurados os meios necessários para o cumprimento do seu mister. Nesse contexto emergem as multas coativas (astreintes), importantes para assegurar a obediência às ordens judiciais dirigidas a terceiros que devem cooperar com a justiça criminal.
Mas e se o terceiro, mesmo sob a ameaça da imposição de multa em caso de inobservância da determinação do juiz, vem a descumpri-la?
O STJ pontuou que o objetivo da multa é coagir o terceiro a cumprir com a ordem judicial. Se não a cumprir, no entanto, o próprio juiz criminal pode impor a multa fixada e, além disso, acionar a ferramenta BACEN-JUD (para bloquear valores do terceiro que estejam custodiados em instituições financeiras) ou, então, determinar a inscrição do débito em Dívida Ativa (não tributária, logicamente) para ulterior cobrança no bojo de uma execução fiscal. Quanto ao argumento de que esse procedimento violaria a garantia do contraditório, a Terceira Seção asseverou que não se trata de menoscabar essa importante garantia fundamental (CRFB, art. 5º, LV), mas sim de postergar o seu exercício, o que poderá ser feito nos próprios autos, perante o juiz da causa, ou, se for o caso, por meio de impugnação junto às instâncias recursais.
Por fim, um último ponto debatido dizia respeito à razoabilidade da multa fixada pelo magistrado singular. No caso concreto, o juiz da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba/PR, em investigação relacionado ao crime de pedofilia via internet, havia determinado ao Facebook a apresentação de certos dados sob pena de multa diária no valor de R$ 50.000,00; tendo ocorrido atraso de 9 (nove) dias no atendimento da determinação judicial, foi-lhe imposta multa de R$ 450.000,00. Para o STJ, não se mostrou excessiva a multa diária fixada pelo juízo de primeira instância, certo que o prório Tribunal, em situações semelhantes, já adotou o mesmo patamar de R$ 50.000,00 por dia para compelir terceiros a cumprirem ordens judiciais. De resto, frise-se que o valor correspondente à multa aplicada ao terceiro renitente no cumprimento da determinação judicial deve ser destinado à União, em se cuidando de processos em trâmite na Justiça Federal, ou ao respectivo Estado, em se tratando de processos que tramitam junto à Justiça Estadual.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
Frise-se que é inadmissível a imposição de multa em desfavor do réu sob o pretexto de que não estaria colaborando com a instrução processual, ante o nemo tenetur se detegere. Nessa senda, aliás, o entendimento majoritário é de que mesmo quando configurada hipótese de litigância de má-fé por parte do acusado não se revela cabível a aplicação analógica do CPC para fixar-lhe multa a esse título. Confira-se: “HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. MULTA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INVIABILIDADE. ANALOGIA IN MALAM PARTEM. DESCABIMENTO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PREVISÃO EXPRESSA. INEXISTÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em virtude da vedação à analogia in malam partem e pela ausência de disposição expressa no Código de Processo Penal, é descabida a imposição de multa por litigância de má-fé em processos de natureza criminal. 2. Ordem concedida.” (HC 452.713/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 11/10/2018).Art. 3o A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Recorde-se que o STF rechaçou o argumento do poder geral de cautela como pretensamente hábil legitimar a condução coercitiva de investigados: “(...) A restrição temporária da liberdade e a condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes. O investigado é claramente tratado como culpado. (...) Arguição julgada procedente, para declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, e pronunciar a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP.” (ADPF 444, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 21-05-2019 PUBLIC 22-05-2019).