Poder de polícia. Delegabilidade. Empresa estatal prestadora de serviço público. Regime não concorrencial. Trânsito. Aplicação de multas. Possibilidade. RE 633782.
Olá pessoal! Tudo bem?
Sabemos que existe divergência na doutrina em torno do tema da delegabilidade do poder de polícia.
Alguns, de modo mais superficial, dizem que o poder de polícia é indelegável. Outros, no entanto, defendem que as atividades materiais acessórias envolvidas com a polícia administrativa poderiam ser delegadas a particulares. Outros, por fim, abordam o tema ao lume da teoria dos ciclos do poder de polícia, para sustentar que as atividades relacionadas aos ciclos (ou etapas) do consentimento de polícia e da fiscalização de polícia podem ser delegadas a particulares; de outro giro, os atos referentes aos ciclos (ou etapas) da ordem de polícia e da sanção de polícia não estão sujeitos a delegação a particulares, por envolverem típica atuação estatal (ius imperii).
O STJ, na matéria, julgou o famoso caso da “BHTrans” (Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte) entendendo que, por se tratar de pessoa jurídica de direito privado (sociedade de economia mista criada pelo Município de Belo Horizonte), não poderia exercer a atividade de sanção de polícia de trânsito (aplicação de multas), embora pudesse exercer a atividade de fiscalização de polícia de trânsito.
Segue o julgado:
"No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista). As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção). Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação.” (REsp 817.534)
Contra essa decisão do STJ foi interposto recurso extraordinário, no bojo do qual restou reconhecida a repercussão geral da matéria. É precisamente este recurso extraordinário que iremos comentar hoje em nosso InfoEmagis em Pauta, pois acaba de ser julgado, em seu mérito, pelo STF (RE 633782).
Para o Supremo, não há inconstitucionalidade no exercício da atividade de sanção de polícia de trânsito (aplicação de multas) pela empresa estatal belo-horizontina.
De início, lembrou-se que o exercício do poder de polícia de trânsito não é exclusivo dos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da CRFB, conforme reconhecido pelo STF no julgamento do RE 658570:
“É constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas. (...) a fiscalização do trânsito com aplicação das sanções administrativas legalmente previstas, embora pudesse se dar ostensivamente, constituiria mero exercício de poder de polícia. Não haveria, portanto, óbice ao seu exercício por entidades não policiais.” RE 658570/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Roberto Barroso, 6.8.2015. (RE658570)
Demais disso, o Supremo enfatizou que a BHTrans consubstancia uma empresa estatal prestadora de serviço público (em sentido lato, registre-se) de atuação própria do Estado e em regime de monopólio, não explorando atividade econômica em regime de concorrência (CRFB, art. 173). Nesse cenário, o regime jurídico híbrido das estatais prestadoras de serviço público em regime de monopólio é plenamente compatível com a delegação do exercício do poder de polícia de trânsito, da mesma forma como se admite o exercício delegado de atividade de polícia por entidades sujeitas a regime jurídico de direito público também integrantes da Administração Indireta. Não há, pois, razão legítima para o afastamento do atributo da coercibilidade inerente ao exercício do poder de polícia de trânsito, em não se cuidando de empresa estatal exploradora de atividade econômica em sentido estrito (sob regime concorrencial).
É interessante notar, outrossim, que, diversamente do que tradicionalmente tem sido sustentado pela doutrina (e também pelo STJ) — na linha de que os ciclos de polícia correspondentes à ordem de polícia (primeira etapa/ciclo) e à sanção de polícia (quarta etapa/ciclo) não poderiam ser delegados —, o Supremo apontou que a única fase do ciclo de polícia que, por sua natureza, é absolutamente indelegável consiste na ordem de polícia (primeira fase/etapa), por envolver a criação de normas jurídicas de forma originária (função legislativa), haja vista o princípio da legalidade que rege a Administração Pública (CRFB, art. 37). Noutras palavras, compreendeu o Excelso Pretório que os atos de consentimento (segunda etapa do ciclo do poder de polícia), de fiscalização (terceira etapa) e de aplicação de sanções (quarta etapa) podem ser delegados a empresas estatais que, por não serem exploradoras de atividade econômica em sentido estrito (sob regime concorrencial) mas sim prestadoras de serviço público (em sentido ampla), estão submetidas a um regime jurídico próximo daquele aplicável à Fazenda Pública.
Para finalizar, vale memorizar a tese fixada pelo STF, a qual seguramente será cobrada nos vindouros certames, ante a grande relevância da matéria “É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial”.
“É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial”.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
A teoria dos ciclos do poder de polícia foi desenvolvida pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem o exercício do poder de polícia pode ser estruturado em 4 (quatro) ciclos (ou etapas): 1º) ordem de polícia: norma jurídica que dá base à limitação da atividade do particular ou ao uso do seu patrimônio, em prol do interesse público, podendo representar uma vedação absoluta (“preceito negativo absoluto”) ou relativa (“preceito negativo relativo”); 2º) consentimento de polícia: ato administrativo que autoriza o exercício de atividade ou ao uso de propriedade, somente existindo em se cuidando da segunda espécie de ordem de polícia ("preceito negativo com reserva de consentimento"); 3º) fiscalização de polícia: verificação em torno do cumprimento das ordens de polícia (ou seja, fiscaliza-se se não está sendo exercida uma atividade vedada ou se uma atividade consentida está sendo executada dentro dos limites estabelecidos); 4º) sanção de polícia: identificada a inobservância da ordem de polícia, tem-se a aplicação da respectiva sanção.
A BHTrans, cuja criação foi autorizada pela Lei Municipal 5.953/1991, é uma sociedade de economia mista municipal de capital fechado, integrante da Administração Indireta do Município de Belo Horizonte, que detém 98% (noventa e oito por cento) do capital social. Tem ainda como acionistas, com 1% (um por cento) do capital social cada, a SUDECAP (Superintendência de Desenvolvimento da Capital), autarquia municipal, e a PRODABEL (Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte S/A), que também é sociedade de economia mista de capital fechado..