Prisão em flagrante. Conversão, de ofício, em prisão preventiva. Pacote Anticrime. Impossibilidade. Posterior requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público. Superação do vício.
Ocorrendo prisão em flagrante, pode o juiz, de ofício, convertê-la em prisão preventiva?
O art. 310, II, do CPP prevê textualmente essa possibilidade:
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
O Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) não mexeu, diretamente, nesse regramento. No entanto, promoveu importantes mudanças no CPP que repercutem na discussão, mais precisamente:
a) ao reforçar o sistema acusatório, vedando a iniciativa do juiz na fase de investigação (art. 3º-A);
b) ao prever, no § 2º do art. 282, que as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público;
c) ao dispor, no art. 311, que, em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Art. 282. (...)
§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Nesse cenário, ninguém tem dúvidas, especialmente após o advento da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que, ao menos em regra, não cabe a decretação de prisão preventiva ex officio pelo juiz.
A controvérsia paira, especificamente, sobre a possibilidade de conversão da prisão em flagrante em uma prisão preventiva, mesmo à míngua de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público.
Eis a dúvida: o art. 310, II, representa uma exceção dentro de um sistema no qual, em regra, a prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo juiz (primeira corrente)? Ou, ao revés, o art. 310, II, merece ser lido sistematicamente com os arts. 3º-A, 282, § 2º, e 311 (segunda corrente)?
A Sexta Turma do STJ vinha capitaneando a primeira corrente. Por sua vez, a Quinta Turma do STJ adotou a segunda corrente, havendo julgados do STF no mesmo sentido.
Para dirimir a divergência existente no STJ, o tema foi levado a julgamento da Terceira Seção, a qual, recentemente, uniformizou a matéria.
Prevaleceu a posição da Quinta Turma, na linha de que, após o advento da Lei 13.964/2019, não é possível a conversão ex offício da prisão em flagrante em preventiva. Somente é possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva mediante provocação por parte ou da autoridade policial, do querelante, do assistente, ou do Ministério Público. Ou seja, deve o art. 310, II, ser interpretado de forma conjugada com os arts. 3º-A, 282, § 2º, e 311.
Outrossim, é interessante notar que a não realização da audiência de custódia (qualquer que tenha sido a razão para isso) ou mesmo a eventual ausência do representante do Ministério Público na assentada não autoriza a conversão da prisão em flagrante em preventiva. É que a autoridade policial ou o membro do parquet podem formular requerimentos independentemente da ocorrência ou participação (no caso do MP) na audiência de custódia. Nesse sentido, ressaltou o STJ o fato de que as novas disposições legais trazidas pela Lei 13.964/2019 impõem ao Ministério Público e à autoridade policial a obrigação de se estruturarem de modo a atender os novos deveres que lhes foram impostos.
Em que pese seja esse o entendimento pacificado pela Terceira Seção do STJ, sobreveio, aproximadamente duas semanas após esse julgamento, decisão da Quinta Turma do STJ que é correlata ao tema e que envolve situação também digna de nota.
Com efeito, a Quinta Turma do STJ entendeu que, a despeito de ser incabível a conversão de ofício, pelo juiz, da prisão em flagrante em prisão preventiva, caso o magistrado o faça, mas sobrevenha requerimento da autoridade policial pela segregação cautelar ou manifestação do Ministério Público favorável à prisão preventiva, o vício da decisão que decretara a preventiva resta superado.
Pontuou a Quinta Turma do STJ, nesse sentido, que o desrespeito das normas que promovem o devido processo legal implica, em regra, nulidade do ato nas hipóteses de descumprimento da sua finalidade e da ocorrência de efetivo e comprovado prejuízo, à luz dos princípios da instrumentalidade das formas e do pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo). Com esse enfoque, ponderou-se que a eventual concessão da ordem, no sentido de revogar a prisão preventiva, seria inócua ante a possibilidade de imediata decretação de nova prisão preventiva, quando há pleito no sentido da decretação e manutenção da segregação cautelar. Por isso, entendeu o colegiado que o posterior requerimento da autoridade policial pela segregação cautelar ou manifestação do Ministério Público favorável à medida cautelar extrema suprem o vício da inobservância da formalidade de prévio requerimento, corroborando a higidez do feito e ausência de nulidade processual.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: