Semi-imputabilidade. Reconhecimento. Incidente de insanidade mental. Imprescindibilidade.
Pode o juiz reconhecer a semi-imputabilidade do réu mesmo sem a realização de exame médico-pericial?
Para melhor nos situarmos na discussão, é interessante lembrar alguns pontos importantes relacionados à matéria.
Como sabemos, o crime, para a teoria tripartida (majoritária) e a partir de um conceito formal-analítico, compõe-se do fato típico, da antijuridicidade e da culpabilidade. A culpabilidade, por sua vez, é também integrada por três elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Imputabilidade é a capacidade de o agente compreender a ilicitude do fato (elemento intelectivo) e de determinar-se de acordo com essa compreensão (elemento volitivo), o que o torna apto a ser responsabilizado criminalmente. Não se confundem, aclare-se, imputabilidade e responsabilidade: imputabilidade é a capacidade de culpabilidade, enquanto que a responsabilidade considera que toda pessoa imputável (dotada de capacidade de culpabilidade) deve responder por seus atos.
Há três sistemas de definição da imputabilidade:
a) Sistema biológico (etiológico): considera o estado psíquico anormal do agente (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado), sem analisar se esta situação afetou sua capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Foi adotado no Código Penal em relação ao menor de 18 anos (art. 27), bem como no art. 228 da CRFB.
CRFB
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
CP
Art. 27 - Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
b) Sistema psicológico: não leva em consideração a causa, mas apenas o efeito. Assim, verifica-se somente se o sujeito possuía, ao tempo da conduta, capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Como o sistema psicológico não considera a existência de anomalia psíquica anterior (causa), entende-se que foi adotado pelo CP em relação à embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior;
c) Sistema biopsicológico ou misto: é o adotado pelo art. 26 do Código Penal. Deve-se verificar, na análise da imputabilidade (essa é a regra geral, frise-se), se o agente, de acordo com sua anomalia psíquica, era, ao tempo da conduta, incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Considera, portanto, a causa e o efeito.
CP
Inimputáveis
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
(...) 2. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em tema de "inimputabilidade (ou semi-imputabilidade), vigora, entre nós, o critério biopsicológico normativo. Assim, não basta simplesmente que o agente padeça de alguma enfermidade mental (critério biológico), faz-se mister, ainda, que exista prova (v.g. perícia) de que este transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilícito do fato (requisito intelectual) ou de determinação segundo esse conhecimento (requisito volitivo) à época do fato, i.e., no momento da ação criminosa" (HC n.º 55.230/RJ, Relator o Ministro Felix Fischer, DJ 1º/8/2006). (AgRg no HC 237.695/MS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 03/09/2013)
E a semi-imputabilidade, em que consiste?
De acordo com o art. 26, parágrafo único, do CP, a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. É essa a chamada semi-imputabilidade, também prevista no art. 46 da Lei de Drogas (regra especial).
CP
Art. 26. (...)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Lei 11.343/2006
Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. (...)
Art. 46. As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Na semi-imputabilidade, o agente detinha, ao tempo da conduta, certa capacidade de entender a ilicitude do fato e de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento, de sorte que não haverá exclusão da culpabilidade, mas tão somente a incidência de uma causa de diminuição de pena, a incidir na terceira fase da dosimetria da pena. Noutras palavras, o agente terá praticado um fato típico, ilícito e culpável, ensejando a prolação de sentença condenatória, mas o juiz diminuirá a pena de um a dois terços. A propósito, é pertinente mencionar que o Código Penal aboliu o sistema duplo binário, que possibilitava a aplicação cumulativa de pena e medida de segurança ao semi-imputável: com a adoção do sistema vicariante ou unitário, prevê-se, ao revés, a possibilidade de substituição da pena por medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial), caso o juiz entenda que o condenado necessita de especial tratamento curativo (CP, art. 98).
CP
Substituição da pena por medida de segurança para o semi-imputável
Art. 98 - Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo anterior e respectivos §§ 1º a 4º.
De que forma o juiz enquadra um certo acusado como inimputável ou semi-imputável?
A teor do art. 149 do CPP, quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal. Trata-se do chamado incidente de insanidade mental, que tramita em autos apartados (CPP, art. 153) e acarreta a suspensão do processo (CPP, art. 149, § 2º), conquanto não suspenda a prescrição (por falta de previsão legal nesse sentido). Não basta, todavia, a existência de requerimento para a sua instauração: cabe ao juiz avaliar a necessidade da medida, devendo determiná-la sempre que houver dúvida razoável sobre a sanidade mental do acusado, como tem ensinado o magistério jurisprudencial:
“A realização do exame de insanidade mental não é automática ou obrigatória, devendo existir dúvida razoável acerca da higidez mental do acusado para o seu deferimento.” (AgRg no HC 606.617/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/09/2020, DJe 21/09/2020)
Agora que estamos bem situados na matéria, retomemos a indagação inicial: pode o juiz reconhecer a semi-imputabilidade do réu mesmo sem a realização de exame médico-pericial?
A Sexta Turma do STJ, em recentíssima decisão noticiada em 25/09/2020, decidiu que o juiz não pode reconhecer a semi-imputabilidade sem antes ter sido realizado exame médico-pericial para avaliar a integridade mental do acusado, no bojo do competente incidente de insanidade mental.
Perceba, porém, que o juiz não está adstrito à conclusão dessa prova pericial. Pode discordar, fazendo-o através de decisão devidamente fundamentada. Mas não pode deixar, contudo, de determinar a realização do exame médico-legal, no contexto do incidente de insanidade mental (CPP, art. 149).
Por oportuno, enfatizamos que o STJ, pela mesma Sexta Turma, já havia decidido, também neste mesmo ano de 2020, na mesma linha da decisão ora comentada:
RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. CONTRARIEDADE AO ART. 26 DO CP E NEGATIVA DE VIGÊNCIA DO ART. 149 DO CPP. ACÓRDÃO IMPUGNADO QUE RECONHECEU A CONDIÇÃO DE SEMI-IMPUTÁVEL DO RECORRIDO (ART. 26, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP), SEM EXAME MÉDICO-LEGAL. ILEGALIDADE. IMPRESCINDIBILIDADE DO EXAME PERICIAL.
1. O art. 149 do CPP não contempla hipótese de prova legal ou tarifada, mas a interpretação sistemática das normais processuais penais que regem a matéria indica que o reconhecimento da inimputabilidade ou semi-imputabilidade do réu (art. 26, caput e parágrafo único do CP) depende da prévia instauração de incidente de insanidade mental e do respectivo exame médico-legal nele previsto, sendo possível, ao Juízo, discordar das conclusões do laudo, desde que por meio de decisão devidamente fundamentada.
2. Recurso especial provido para cassar, em parte, o acórdão exarado no julgamento da Apelação Criminal n. 70073399487 - especificamente na parte que aplicou o redutor do art. 26, parágrafo único, do CP - a fim de que, verificada a dúvida acerca da sanidade mental do recorrido à época do crime, seja determinada a baixa dos autos ao Juízo de origem para realização de exame médico-legal nos termos do art. 149 do CPP.
(REsp 1802845/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 23/06/2020, DJe 30/06/2020)
Por fim, lembramos que o art. 319, VII, do CPP contempla, como medida cautelar diversa da prisão, a internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do CP) e houver risco de reiteração.
CPP
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
(...)
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
Nesse mesmo precedente que ora comentamos, a Sexta Turma do STJ reconheceu que a aplicação da medida cautelar em tela (CPP, art. 319, VII) também depende da prévia realização de exame médicopericial, não podendo ser determinada com base em presunções ou “achismos” por parte do magistrado singular.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo:
Alguns falam em tipo positivo de culpabilidade, relativamente à valoração da imputabilidade.
A PEC 33/2012 visa alterar o art. 228 da CRFB a fim de permitir que lei complementar possa prever hipóteses nas quais o Ministério Público poderá propor incidente de desconsideração de inimputabilidade de maior de 16 anos e menor de 18 anos que tenha praticado, em tese, ato infracional. No site do STJ (www.stj.jus.br). O número do julgado, no entanto, não foi referido porque corre sob segredo de justiça.