STJ, AREsp 1.803.562. Tribunal do Júri. Condenação. Recurso de apelação. Art. 593, III, "d", do CPP.
O interessante precedente do STJ que vamos comentar versa sobre o rito procedimental dos processos da competência do Tribunal do Júri. Mais precisamente, sobre a hipótese de interposição de recurso de apelação “quando a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”:
CPP
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
(...)
III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:
(...)
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
Como ponto de partida, é importante lembrar que, a despeito de a Constituição Federal consagrar a soberania dos veredictos no julgamento pelo Tribunal do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII, ‘c’), essa soberania não é absoluta. A respeito, é digno de nota que já nas primeiras decádas do século XIX a Suprema Corte dos EUA construiu a “no evidence rule” (regra da falta de provas) como autêntica exceção à soberania dos veredictos: a completa ausência de elementos probatórios não autoriza a condenação do réu pelo corpo de jurados (ex.: Greenleaf v. Birth, 1835). Sem dúvida, essa evolução jurisprudencial inspira a hipótese estampada no art. 593, III, ‘d’, do CPP, abrindo espaços à interposição de recurso de apelação “quando a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”.
Mas quais são os limites a que está sujeito o Tribunal de segunda instância ao examinar o recurso de apelação interposto com supedâneo nesse art. 593, III, ‘d’, do CPP? Até onde pode ir nessa análise sem que viole a garantia constitucional da soberania dos veredictos (CF, art. 5º, XXXVIII, ‘c’)?
O STJ equacionou a questão de maneira muito interessante.
Para o Tribunal da Cidadania, quando a defesa recorre contra a decisão condenatória dos jurados invocando o art. 593, III, ‘d’, do CPP, o Tribunal de segunda instância tem o dever de analisar se existem provas de cada um dos elementos essenciais do crime, ainda que não concorde com o peso que lhes deu o Júri. Falou, para tanto, em um juízo antecedente e um juízo consequente.
O juízo antecedente diz respeito ao exame em torno da existência de elementos probatórios dos autos embasam (I) a materialidade e (II) autoria delitivas, bem como (III) a rejeição de alguma causa excludente de ilicitude ou culpabilidade eventualmente suscitada pela defesa. Essa análise pelo Tribunal de segunda instância é cabível — mais do que isso, é necessária nessa hipótese, sob pena de violação à garantia da fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX). Assim, por exemplo, haverá nulidade de acórdão do Tribunal de Justiça que, ao negar provimento ao recurso de apelação interposto pela defesa com fulcro no art. 593, III, ‘d’, do CPP, se limitar a apontar a existência de provas sobre a materialidade delitiva, nada dizendo sobre a existência de provas acerca da autoria irrogada ao réu.
O juízo consequente, por sua vez, compete exclusivamente ao Júri, nele não podendo adentrar o Tribunal de Justiça, porquanto estaria vilipendiando a garantia constitucional da soberania dos veredictos (CF, art. 5º, XXXVIII, ‘c’). E o que é esse juízo consequente? É a valoração, o peso a ser atribuído às provas. Perceba: uma coisa é a análise em torno da existência de provas sobre cada um dos elementos do crime (juízo antecedente), outra bem diversa é a valoração dessas provas (ex.: dizer se as provas seriam suficientes para a condenação).
Ao lume dessas premissas, o STJ entendeu que, ao deparar com recurso especial defensivo interposto contra aresto que apreciou apelação fundada no art. 593, III, "d", do CPP, podem exsurgir três situações:
“(I) Primeiramente, se o acórdão recorrido deixou de analisar todas as provas relevantes para embasar a decisão dos jurados, haverá nulidade por negativa de prestação jurisdicional, violando os arts. 381, III, 564, V, e (possivelmente) 619 do CPP. Embora não se exija pronunciamento expresso quanto a cada ponto suscitado pelas partes - já que a atividade de julgar não equivale a preencher um questionário ideal por elas apresentado -, deve o Tribunal expor a existência de todas as provas que dão suporte ao veredito dos jurados, em relação a cada um dos elementos essenciais do crime;
(II) Em segundo lugar, se o acórdão demonstrou, sem omissões, que há provas de todos os aspectos do delito, eventual recurso especial que questione a força dessas provas, o peso que lhes deve ser atribuído na formação do convencimento ou mesmo qual delas deve prevalecer, quando apresentadas evidências contraditórias em plenário, esbarrará na Súmula 7/STJ. É o caso, por exemplo, de recursos constantemente julgados por este colegiado que debatem a inexistência de dolo, a credibilidade das testemunhas, a força do álibi apresentado pelo réu, dentre outros temas análogos;
(III) Por fim, a terceira e última hipótese é a do acórdão que analisou o conjunto fático-probatório dos autos, também sem omissões, mas não explicitou a existência de provas para cada um dos elementos do delito. Não se trata do caso em que, existindo outras provas, o aresto deixa de mencioná-las, porque esse seria o primeiro cenário acima elencado, no qual há nulidade por deficiência na fundamentação; a terceira situação é diversa. Nela, é a Corte de origem quem demonstra, ainda que por seu silêncio, a ausência de provas de todos os elementos do crime, pois ela própria não conseguiu encontrá-las no julgamento da apelação.”
Perceba que apenas nessa última situação é que será cabível ao Tribunal da Cidadania conhecer de eventual violação do art. 593, III, "d", do CPP, uma vez que não se estará a discutir qual das provas existentes deve prevalecer (algo que esbarraria no óbice da Súmula 7 do STJ), e sim se a Corte de segunda instância indicou, efetivamente, a existência de provas quanto a cada um dos elementos essenciais do crime (o “juízo antecedente”, acima explicado).
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: