STJ, CC 174.764. Conflito negativo de competência. Juízos estadual e federal. Ação de improbidade administrativa ajuizada por ente municipal. Prestação de contas de verbas federais. Mitigação das súmulas 208/STJ e 209/STJ.
Situação Fática: Município ajuíza ação de improbidade administrativa contra ex-gestor público para apurar irregularidades no emprego de verbas públicas transferidas pelo governo federal mediante convênio.
Controvérsia: Considerando que as verbas transferidas não foram incorporadas ao patrimônio municipal e estão sujeitas a prestação de contas junto a órgão federal, qual ramo da Justiça Comum (Federal ou Estadual) será competente para julgar e processar o réu?
Decisão: Para o STJ, a ação de improbidade administrativa movida pelo Município será processada na Justiça Estadual, independentemente de ação criminal sobre os mesmos fatos estar em curso na Justiça Federal.
Fundamentos: Embora a literalidade do art. 17-D da Lei 8.429/92, incluído pela Lei 14.230/21, seja expressa em dizer que “A ação de improbidade administrativa ... não constitui ação civil”, é pacífico na doutrina e jurisprudência a natureza não-criminal (cível, aqui com “acento agudo” e “e”) da ação de improbidade.
A resposta ao questionamento contido no enunciado passa pela interpretação dos incisos I e IV do art. 109 da CF e leva em conta a natureza não-criminal da improbidade:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;”
Diante disso, o julgado realiza um distinguishing na aplicação das Súmulas 208 (“Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.”) e 209 (“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.”) do STJ, que provêm da Terceira Seção, com competência para julgar feitos criminais.
A conclusão do STJ é de que as Súmulas 208 e 209 do tribunal apenas se aplicam no âmbito penal (inciso IV do art. 109 da CF), não sendo aptas a definir a competência na seara cível (inciso I).
Isto porque a competência da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, que tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide. É chamada de competência em razão da pessoa (ex ratione personae).
Aqui o dispositivo constitucional se refere literalmente à União, suas autarquias e empresas públicas.
O termo causas abarca tanto feitos de jurisdição contenciosa como de jurisdição voluntária.
Os sujeitos podem figurar na qualidade de autor, réu, assistente ou opoente, segundo a literalidade da norma, admitindo a jurisprudência que a assistência possa ser simples ou litisconsorcial, bem como todas as modalidades de intervenção de terceiros, como denunciação à lide, chamamento ao processo e nomeação à autoria, além da oposição.
Inclusive, sequer o interesse da União Federal necessita ser jurídico, já que o art. 5º da Lei 9.469/97 admite o interesse meramente econômico, através do instituto da intervenção anômala.
Atente-se, também, que o inciso I do art. 109 não inclui as sociedades de economia mista.
Lado outro, na fixação da competência em matéria penal basta o interesse da União ou de suas autarquias ou empresas públicas para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109 da CF.
Aqui a competência é em razão da matéria (ex ratione materiae) e leva em conta a natureza da infração, a exemplo dos crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, entidades autárquicas e empresas públicas, ressalvada a competência da Justiça Militar e Eleitoral.
O inciso IV do art. 109 novamente excepciona as sociedades de economia mista, nos termos da Súmula 42 do STJ (“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”).
O termo “bens” se relaciona com a ideia de patrimônio. Quanto às verbas públicas, toda vez que a verba estiver sujeita à fiscalização dos órgãos de controle interno do Poder Executivo federal bem como do Tribunal de Contas da União, haverá interesse da União em sua aplicação e destinação. Eventual desvio atrai a competência criminal da Justiça Federal para conhecer da matéria.
É dizer, independe que exista expressa manifestação do ente público federal para que o crime seja definido como federal e haja a fixação de competência federal.
Como conclusão, para o STJ é possível que os mesmos fatos configurem um crime federal mas ato de improbidade administrativa estadual e vice-versa. Ou, ainda, idênticos fatos podem caracterizar crime e ato de improbidade que tramitem ambos na Justiça Federal ou na Justiça Estadual.
Não é possível definir aprioristicamente a competência, que dependerá de elementos do caso concreto. É corolário da autonomia dos critérios ex ratione personae no âmbito cível e ex ratione materiae no âmbito criminal para a competência da Justiça Federal, atribuindo-se a competência estadual por residualidade.
No caso posto no enunciado, a competência será da justiça comum estadual para conhecer da ação de improbidade. A afirmação independe de a verba federal haver ou não se incorporado ao patrimônio municipal, bem como de existir ou não ação criminal em trâmite na justiça federal. O que importa é que não há ente federal como autor, ré, assistente ou oponente na ação de improbidade.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: