STJ, CC 177100. Foro por prerrogativa de função. Membros do Ministério Público e Magistrados (art. 96, III, da Constituição Federal). Crimes comuns não relacionados com o cargo.
Sabemos que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da QO na AP 937, passou a adotar uma interpretação restritiva em relação ao alcance das regras constitucionais pertinentes à prerrogativa de foro, fixando a seguinte tese:
“O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”.
Confira-se o leading case, para uma melhor compreensão sobre essa nova visão jurisprudencial:
Ementa: Direito Constitucional e Processual Penal. Questão de Ordem em Ação Penal. Limitação do foro por prerrogativa de função aos crimes praticados no cargo e em razão dele. Estabelecimento de marco temporal de fixação de competência. I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. 4. A orientação aqui preconizada encontra-se em harmonia com diversos precedentes do STF. De fato, o Tribunal adotou idêntica lógica ao condicionar a imunidade parlamentar material – i.e., a que os protege por suas opiniões, palavras e votos – à exigência de que a manifestação tivesse relação com o exercício do mandato. Ademais, em inúmeros casos, o STF realizou interpretação restritiva de suas competências constitucionais, para adequá-las às suas finalidades. Precedentes. II. Quanto ao momento da fixação definitiva da competência do STF 5. A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais – do STF ou de qualquer outro órgão – não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Precedentes. III. Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. 8. Como resultado, determinação de baixa da ação penal ao Juízo da 256ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, em razão de o réu ter renunciado ao cargo de Deputado Federal e tendo em vista que a instrução processual já havia sido finalizada perante a 1ª instância. (AP 937 QO, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-265 DIVULG 10-12-2018 PUBLIC 11-12-2018)
A Corte Especial do STJ, entretanto, já havia realizado um distinguishing a essa orientação do Supremo em casos nos quais o crime imputado a Desembargador for de competência material da Justiça Estadual e abrangido pela competência territorial do Tribunal de Justiça ao qual vinculado e no qual exerce suas funções. Asseverou-se que, nos casos em que são membros da magistratura nacional tanto o acusado quanto o julgador, a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial. Entender que um Desembargador poderia ser julgado, na primeira instância, por um juiz vinculado ao mesmo Tribunal comprometeria, sem dúvida, a imparcialidade do julgamento, algo que não pode ser ignorado.
Eis o leading case em que o STJ assentou esse distinguishing:
PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL. COMPETÊNCIA CRIMINAL ORIGINÁRIA DO STJ. ART. 105, I, "A", DA CONSTITUIÇÃO. QO NA AP 937/STF. QO NA APN 857/STJ. AGRG NA APN 866/STJ. DESEMBARGADOR. CRIME SEM RELAÇÃO COM O CARGO. VINCULAÇÃO FUNCIONAL. PRERROGATIVA DE FORO. FINALIDADE DA NORMA. EXERCÍCIO INDEPENDENTE DAS FUNÇÕES PELA AUTORIDADE DETENTORA DE FORO. IMPARCIALIDADE DO ÓRGÃO JULGADOR. CREDIBILIDADE DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL. COMPETÊNCIA DO STJ.
1. Hipóteses em que Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná responde pela prática, em tese, de delito de lesão corporal ocorrido em Curitiba-PR.
2. O crime que é imputado ao réu não tem relação com o exercício do cargo de Desembargador, de modo que, a princípio, aplicando-se o precedente produzido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da QO na AP 937, não teria o réu foro no Superior Tribunal de Justiça.
3. A interpretação do alcance das hipóteses de prerrogativa de foro previstas na Constituição da República, não obstante, responde não apenas à necessidade de que aquele que goza da prerrogativa tenha condições de exercer com liberdade e independência as funções inerentes ao cargo público que lhe confere a prerrogativa.
4. Para além disso, nos casos em que são membros da magistratura nacional tanto o acusado quanto o julgador, a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial.
5. A necessidade de que o julgador possa reunir as condições para o desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial não se revela como um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize justiça criminal de forma isonômica e republicana.
6. Questão de ordem resolvida no sentido de se reconhecer a competência do Superior Tribunal de Justiça nas hipóteses em que, não fosse a prerrogativa de foro (art. 105, I, da Constituição), o Desembargador acusado houvesse de responder à ação penal perante juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal.
(QO na APn 878/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/11/2018, DJe 19/12/2018)
Recentemente, a Terceira Seção do STJ estendeu essa exceção também para promotores de Justiça. Considerou, para tanto, que, como a prerrogativa de foro da Magistratura e Ministério Público encontra-se descrita no mesmo dispositivo constitucional (art. 96, inciso III, da CF), seria desarrazoado conferir-lhes tratamento diferenciado. Salientou, outrossim, que o STF, nos autos do ARE 1.223.589/DF (reautuado para RE 1.331.044), por unanimidade, já reconheceu a existência de repercussão geral (Tema 1.147) na questão atinente à possibilidade ou não de o STJ processar e julgar Desembargador por crime comum, ainda que sem relação com o cargo. Noutras plavras, compreendeu a Terceira Seção que o precedente estabelecido pelo STF no julgamento da QO na AP 937/RJ diz respeito apenas a cargos eletivos, ao passo que a prerrogativa de foro disciplinada no art. 96, III, da Constituição Federal, que abrange magistrados e membros do Ministério Público, ainda será analisada pela Suprema Corte no julgamento do Tema 1.147.
Eis a síntese do julgado:
“Compete aos tribunais de justiça estaduais processar e julgar os delitos comuns, não relacionados com o cargo, em tese praticados por Promotores de Justiça.” CC 177.100-CE, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 08/09/2021, DJe 10/09/2021.
De resto, é interesse notar que, embora o julgado cuidasse de promotor de Justiça, a ratio que inspira o precedente alcança, também,
(a) juízes de Direito, no foro por prerrogativa de função perante o respectivo Tribunal de Justiça, e (b) juízes federais e procuradores da República (membros do Ministério Público Federal), no foro por prerrogativa de função perante o respectivo Tribunal Regional Federal.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: