STJ, EREsp 1.577.162. Transporte rodoviário. Roubo de carga. Adoção de todas as cautelas assecuratórias pela transportadora. Agravamento do risco pelo segurado. Ato culposo ou doloso. Responsabilidade Civil.
Situação Fática: Hermes da Fonseca contratou a Transportadora Raio Ltda. para transportar bens móveis por via rodoviária no Brasil.
O contrato de transporte, seguindo a determinação do art. 13 da Lei 11.442/07, contém a previsão de seguro obrigatório da carga com a Seguradora Ouro Velho S/A além de também conter a previsão de seguro facultativo contra furto e roubo da carga com a mesma seguradora.
No contrato consta que, na hipótese de sinistro, a Transportadora Raio (segurada) indenizaria diretamente Hermes (beneficiário), na qualidade de proprietário da carga transportada, para, após, ser ressarcida pela Seguradora Ouro Velho S/A.
Após assinado pelas 3 partes o referido contrato de transporte com o pacto adjeto de seguro foi emitida a respectiva apólice. Hermes cumpriu sua parte, pagando o preço – que abarcava o prêmio da seguradora – e entregando a carga para a Transportadora Raio que, infelizmente, foi roubada durante a execução do transporte.
Após comunicado o sinistro à Seguradora, a Transportadora indenizou Hermes conforme esperado. Entretanto a Transportadora Raio não seguira à risca o previsto no Plano de Gerenciamento de Risco junto à Seguradora Ouro Velho, que exigia que antes do início da execução do transporte fosse previamente informado no sítio eletrônico da seguradora o seguinte: a discriminação, a quantidade e o valor da carga, o destino, o trajeto, dia e horário, bem como qual seria o motorista que realizaria o transporte com a respectiva ficha de antecedentes criminais.
O Plano de Gerenciamento de Risco ainda previa que a seguradora poderia aceitar as condições, propor alterações ou mesmo, às suas expensas, fornecer outros meios e segurança adicional ao transporte.
Controvérsia: Poderia a Seguradora Ouro Velho S/A recusar ressarcir a Transportadora Raio Ltda. da indenização já paga a Hermes da Fonseca pelo roubo da carga do transporte rodoviário?
Decisão: Para o STJ, sim. A conduta direta do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou doloso, acarreta a exoneração do dever da seguradora do pagamento da indenização.
Fundamentos: O STJ fixou importantes parâmetros tanto para o contrato de transporte como para o contrato de seguro envolvendo a modalidade rodoviária de cargas no Brasil.
O roubo da carga constitui fato ou ato de terceiro que é considerado como fortuito externo ao contrato de transporte, excluindo, em regra, o dever de indenizar da transportadora pelo rompimento do nexo causal.
Essa é a leitura que o STJ faz do art. 749 do CC (“O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.”) e do parágrafo único do art. 393 do CC (“O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”).
Não seria possível equiparar o contrato de transporte ao contrato de segurança patrimonial tampouco estabelecer que a atividade do transportador envolveria uma obrigação de fim a atrair a responsabilização pelo resultado.
Para o STJ só seria possível responsabilizar a transportadora pelo roubo perpetrado por terceiro se não foram adotadas as cautelas necessárias, sendo o transporte uma obrigação de meio.
Aqui o STJ estendeu ao contrato de transporte seus precedentes que já excluíam a responsabilidade da ECT no contrato de serviço postal sempre que a encomenda era roubada:
“A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), ao prestar serviço de coleta, transporte e entrega domiciliar de fitas de vídeo mediante Sedex, não responde pelos danos decorrentes do roubo da carga, salvo se demonstrado que a transportadora não adotou as cautelas necessárias. (...) O serviço de coleta, transporte e entrega domiciliar de fitas de vídeo, ainda que exercido pelos Correios, caracteriza atividade econômica típica, devendo ser observado o regime de direito privado aplicável a empresas de transporte de carga, com as quais a ECT concorre no mercado. O art. 17, I, da Lei n. 6.538/1978 exclui a responsabilidade objetiva da empresa exploradora de serviço postal pela perda ou danificação de objeto postal em caso de força maior, cuja extensão conceitual abarca a ocorrência de roubo das mercadorias transportadas.
Atualmente, a força maior deve ser entendida como espécie do gênero fortuito externo, do qual faz parte também a culpa exclusiva de terceiros, os quais se contrapõem ao chamado fortuito interno.
O roubo mediante uso de arma de fogo é fato de terceiro equiparável à força maior, que deve excluir o dever de indenizar, mesmo no sistema de responsabilidade civil objetiva, por se tratar de fato inevitável e irresistível que gera uma impossibilidade absoluta de não ocorrência do dano.
Não é razoável exigir que os prestadores de serviço de transporte de cargas alcancem absoluta segurança contra roubos, uma vez que a segurança pública é dever do Estado, também não havendo imposição legal obrigando as empresas transportadoras a contratar escoltas ou rastreamento de caminhão e, sem parecer técnico especializado, nem sequer é possível presumir se, por exemplo, a escolta armada seria eficaz para afastar o risco ou se o agravaria pelo caráter ostensivo do aparato. (...).
REsp 976.564-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/9/2012.”
Entretanto, o STJ ressalvou que, embora a transportadora usualmente não seja responsável por indenizar os roubos ocorridos durante o transporte de cargas (caso fortuito e força maior), é plenamente possível que mediante cláusula contratual expressa a transportadora assuma para si a responsabilidade civil também por esses fortuitos externos, nos termos do art. 393, caput, in fine, do CC (“O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.).
Para os contratos de transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, o art. 13 da Lei 11.442/07 impõe o dever de se contratar o seguro obrigatório ou legal.
Nos termos do parágrafo único desse preceito legal, a SUSEP, enquanto executora da política nacional de seguros (art. 36 do DL 73/66), detém a competência de baixar instruções e expedir circulares relativas à regulamentação das operações de seguro (alínea ‘b’ do art. 36) e fixar condições de apólices a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador (alínea ‘c’ do art. 36).
Disciplinando o seguro obrigatório do art. 13 da Lei 11.442/07, a SUSEP editou a Resolução CNSP 219/10, que dispõe sobre o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário – Carga (RCTR-C).
Mesmo que não tenha ficado tão claro na presente notícia de informativo, esse seguro legal RCTR-C ordinariamente não cobre o risco de roubo ou furto da carga transportada, mas apenas o risco de colisão, capotagem, abalroamento, tombamento, incêndio ou explosão no veículo do transportador (arts. 1º, I, II, 4º, X, da Resolução CNSP 219/10).
Não obstante, é possível também segurar o risco de roubo ou furto da carga transportada por via rodoviária através de um seguro facultativo, é dizer, adicional ao seguro obrigatório do art. 13 da Lei 11.442/07.
Nesse sentido a SUSEP editou a Circular SUSEP 422/11 que estabelece as regras básicas para a comercialização do Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário por Desaparecimento de Carga (RCF-DC), e disponibiliza, no endereço eletrônico da SUSEP, as condições contratuais do Plano Padronizado deste seguro.
O caso julgado pelo STJ envolvia exatamente esse seguro facultativo RCF-DC com o sinistro roubo da carga transportada por via rodoviária.
Para o contrato de seguro da carga transportada via rodoviária, o STJ entendeu que a transportadora tem o dever anexo (ou lateral) derivado da boa-fé objetiva de seguir à risca o previsto no Plano de Gerenciamento de Risco junto à Seguradora, sob pena de se caracterizar o previsto no art. 786 do CC (“O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.”), liberando a seguradora de ressarcir a transportadora pelo roubo ocorrido à carga, uma vez que por culpa da própria transportadora teria ela contribuído, ainda que indiretamente, para o evento fortuito roubo, agravando culposamente o risco do contrato de seguro.
É dizer, se a transportadora não cumprir exatamente todas as instruções da seguradora, será ela transportadora quem arcará com o ônus econômico de indenizar o proprietário da carga sinistrada.
Outro fato não abordado pelo STJ é que, à semelhança do seguro de vida, a pessoa do beneficiário do seguro não se confunde com a do segurado. Existe uma estipulação do segurado (transportador) em favor de terceiro beneficiário (proprietário da carga).
A depender do previsto no arranjo contratual, a indenização ao proprietário da carga pode tanto ser paga pela transportadora (que se ressarcirá posteriormente perante a seguradora) como pela própria seguradora (que se sub-rogará nos direitos e ações do segurado contra o causador do dano nos termos do art. 786 do CC).
Tendo a transportadora contribuído (indiretamente) para o evento danoso, haverá culpabilidade do segurado no sinistro, de maneira que a transportadora não poderá se ressarcir junto à seguradora do valor previamente pago ao proprietário da carga, ou, se a seguradora indenizar o proprietário da carga, poderá a seguradora acionar a transportadora que concorreu para o roubo através da não observância do dever de anexo de cuidado de não agravar o risco.
Com essas considerações é que deve ser entendida a conclusão do STJ: o roubo de carga em transporte rodoviário, mediante uso de arma de fogo, exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas todas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar, assim como a conduta direta do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou doloso, acarreta a exoneração do dever da seguradora do pagamento da indenização
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: