STJ, EREsp 1.856.980. Posse de ínfima quantidade de munição de uso restrito. Art. 16, caput, da Lei 10.826/03. Ausência de arma de fogo. Atipicidade da conduta. Não cabimento.
É cediço que o crime do art. 16 da Lei 10.826/03 é de perigo abstrato, dispensando a demonstração de que o bem jurídico tutelado (segurança e incolumidade públicas) tenha sido concretamente colocado em perigo no contexto específico da situação fática analisada. Também é tranquilo o entendimento jurisprudencial no sentido de que o só fato de terem sido apreendidas com o agente munições de uso restrito sem a correspondente arma de fogo não torna, por si só, a conduta atípica.
Entrementes, se por um lado a ausência de apreensão de arma de fogo no mesmo contexto da apreensão da munição não acarreta a atipicidade da conduta, por outro não se deve rechaçar a possibilidade de reconhecimento de falta de tipicidade material mercê da aplicação do princípio da insignificância, mesmo que se cuide de um crime de perigo abstrato. Nesse andamento, há diversos julgados do STF e do STJ admitindo a ocorrência de crime bagatelar em situações nas quais é ínfima a quantidade de munições encontradas com o agente sem a correspondente arma de fogo.
No recentíssimo precedente da Terceira Seção do STJ que estamos a comentar, não se superou, propriamente, nenhum desses escólios jurisprudenciais. Em realidade, foi-se mais a fundo, examinando e chamando a atenção para um aspecto que, por vezes, pode passar desapercebido em uma análise mais superficial do problema.
Com efeito, firmou-se posicionamento na trilha de que a apreensão de ínfima quantidade de munição desacompanhada da arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta, devendo ser examinadas as peculiaridades do concreto a fim de sindicar se estão presentes as quatro vetoriais características à aplicação do princípio da insignificância, quais sejam, (i) a mínima ofensividade da conduta do agente, (ii) a ausência de periculosidade social da ação, (iii) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
À luz dessa premissa, a Terceira Seção analisou caso concreto e considerou que a condenação simultânea pelos crimes de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei 11.343/06) e de associação para o tráfico (art. 35 da Lei 11.343/06), envolvidos no mesmo contexto fático, impede que se reconheça a insignificância da conduta de posse de munição de uso restrito (art. 16, caput, da Lei 10.826/03), ainda que se trate de uma única munição e esteja desacompanhada da arma de fogo.
Eis o relevante e uniformizador precedente, tal qual retratado no Informativo do STJ: “A apreensão de ínfima quantidade de munição desacompanhada da arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta.
No acórdão embargado, da Sexta Turma, a apreensão de ínfima quantidade de munição, aliada à ausência de artefato apto ao disparo, implica o reconhecimento, no caso concreto, da incapacidade de se gerar perigo à incolumidade pública.
No julgado paradigma, a Quinta Turma decidiu que "apesar da apreensão de apenas uma munição na posse do réu, a condenação pelo outro crime (tráfico de drogas), revela a impossibilidade de reconhecimento da atipicidade da conduta do delito do art. 16, caput, da Lei n. 10.826/2003. A particularidade do caso demonstra a efetiva lesividade desta conduta".
Assim, discute-se o entendimento, até então predominante nesta Corte, de que a simples conduta de possuir ou portar ilegalmente arma, acessório, munição ou artefato explosivo é suficiente para a configuração dos delitos previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003, sendo dispensável a comprovação do potencial lesivo.
O Supremo Tribunal Federal passou a admitir a aplicação do princípio da insignificância em hipóteses excepcionalíssimas, quando apreendidas pequenas quantidades de munições e desde que desacompanhadas da arma de fogo.
Na mesma linha da jurisprudência do STF, a Quinta Turma dessa Corte Superior tem entendido que o simples fato de os cartuchos apreendidos estarem desacompanhados da respectiva arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta, de maneira que as peculiaridades do caso concreto devem ser analisadas a fim de se aferir: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
No caso, embora com o embargado tenha sido apreendida apenas uma munição de uso restrito, desacompanhada de arma de fogo, ele foi também condenado pela prática dos crimes descritos nos arts. 33, caput, e 35, da Lei n. 11.343/2006 (tráfico de drogas e associação para o tráfico), o que afasta o reconhecimento da atipicidade da conduta, por não estarem demonstradas a mínima ofensividade da ação e a ausência de periculosidade social exigidas para tal finalidade.
Desse modo, deve prevalecer no STJ o entendimento do acórdão paradigma.” EREsp 1.856.980-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 22/09/2021.
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO CONFIGURADO. CRIME DO ART. 16, CAPUT, DA LEI N. 10.826/2003. POSSE DE UMA MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CASO CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO CONCOMITANTE POR CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. A Quinta Turma e a Sexta Turma dessa Corte Superior, a última, em algumas oportunidades, tem entendido que o simples fato de os cartuchos apreendidos estarem desacompanhados da respectiva arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta, de maneira que as peculiaridades do caso concreto devem ser analisadas a fim de se aferir: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
2. Na hipótese dos autos, embora com o embargado tenha sido apreendida apenas uma munição de uso restrito, desacompanhada de arma de fogo, ele foi também condenado pela prática dos crimes descritos nos arts. 33, caput, e 35, da Lei n. 11.343/06 (tráfico de drogas e associação para o tráfico), o que afasta o reconhecimento da atipicidade da conduta, por não estarem demonstradas a mínima ofensividade da ação e a ausência de periculosidade social exigidas para tal finalidade.
3. Embargos de Divergência providos, agravo regimental provido e recurso especial desprovido.
(EREsp 1856980/SC, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/09/2021, DJe 30/09/2021)
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: