STJ, REsp 1.953.607. Remição de pena. Art. 126, §4º, da Lei 7.210/1984 (LEP). Trabalho e estudo. Suspensão durante a pandemia de Covid-19. Princípio da individualização da pena. Proibição de remição ficta. Situação excepcionalíssima.
Situação Fática: Jagunço Mulambo não pôde prosseguir com o trabalho que vinha realizando durante a execução penal, em razão da medidas restritivas impostas pela pandemia da Covid-19.
Durante 8 (oito) meses a impossibilidade persistiu, somente após o quê foi possível retornar ao seu labor.
A defesa, então, requereu ao juízo da Vara de Execuções Penais o reconhecimento do direito à remição da pena durante o período em que lhe foi interditado o exercício da atividade laborativa.
Controvérsia: Jagunço tem direito à remição pleiteada? Noutras palavras, é cabível o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetiva trabalho (ou estudo, conforme o caso) em favor dos presos que já estavam trabalhando (ou estudando) e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão da pandemia da Covid-19?
Decisão: Para o STJ, nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao art. 126, §4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia de Covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico.
Fundamentos: A jurisprudência pacífica do STJ aponta que não se admite a concessão de remição da pena pelo simples fato de o Estado não propiciar meios necessários para o labor ou a educação de todos os custodiados.
Noutras palavras, a omissão estatal não pode implicar remição ficta da pena, uma vez que não se harmoniza com o objetivo do instituto em tela, que é o de encurtar o tempo de pena mediante a efetiva dedicação do preso a atividades lícitas e favoráveis à sua reinserção social e ao seu progresso educativo.
Por isso mesmo, não se pode dar interpretação extensiva à regra hospedada no art. 126, § 4º, da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84), segundo a qual “O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição”.
Ao analisar, contudo, o contexto excepcional da pandemia da Covid-19 – em que muitos apenados não puderam prosseguir com o trabalho ou estudo que vinham ensejando a remição da pena -, a Terceira Seção do STJ entendeu de forma diversa.
Enfatizou-se, de fato, a excepcionalidade da situação enfrentada durante a pandemia da Covid-19.
A par disso, lembrou-se que, “ante a contemporaneidade dos acontecimentos, exemplifique-se a particularidade do caso com as seguintes medidas verificadas: (a) estado de emergência reconhecido por emenda constitucional (EC 123/22); (b) auxílios emergenciais concedidos à população necessitada; (c) trabalho remoto tanto no setor público quanto no setor privado à maioria dos trabalhadores por determinado período; e (d) recolhimento familiar compulsório decretado pelos governantes. Esse contexto geral demonstra que os instrumentos ordinariamente utilizados não se mostravam suficientes e adequados para a extraordinariedade dos acontecimentos.”.
Destacando, outrossim, a interpretação restritiva que a jurisprudência sempre apregoou em relação ao art. 126, § 4º, da LEP (“O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição”), o STJ salientou que a “pandemia da covid-19 representou uma situação excepcionalíssima que, dado sua natureza, não se mostraria razoável exigir que o legislador elencasse, ao lado do acidente de trabalho, eventual pandemia como forma de continuação excepcional da remição.”.
Nesse compasso, aplicou-se a teoria da derrotabilidade das normas jurídicas.
Atribuída a Herbert L. A. Hart, a “defeasibility” – termo inglês que foi traduzido, no Brasil, por “derrotabilidade” - surgiu no contexto da filosofia jurídica, em um artigo do jurista inglês denominado “The ascription of responsibility and rights”, publicado em 1949.
Para Uadi Lammêgo Bulos, a “Derrotabilidade é o ato pelo qual uma norma jurídica deixa de ser aplicada, mesmo presentes todas as condições de sua aplicabilidade, de modo a prevalecer a justiça material no caso concreto” (BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 133).
Tradicionalmente, aponta-se que, enquanto os princípios jurídicos são aplicados como mandamentos de otimização e se sujeitam a ponderação entre si (Robert Alexy), as regras jurídicas são aplicadas segundo a fórmula “se, então” ou “all or nothing” (Ronald Dworkin), de modo que, verificado o suporte fático de uma regra, ou ela é válida, e deve ser aplicada, ou, então, ela é inválida (ex.: inconstitucional, revogada expressa ou tacitamente etc.), e somente assim deixará de ser aplicada.
Como sublinha Cristiano Chaves, “a especificação e a determinabilidade da norma-regra podem gerar inconveniências para a aplicação da norma jurídica.
Isso porque trazendo consigo soluções apriorísticas, as regras (válidas e compatíveis com o sistema jurídico) podem, eventual e episodicamente, se colocar em rota de colisão com os ideais almejados pelo sistema jurídico como um todo.”.
Nesse cenário, “por mais que as regras estejam caracterizadas pela presença de um componente descritivo que permite a dedução (após sua interpretação) de um comportamento devido, elas somente estão baseadas em um montante finito de informações e, apesar de isso não acontecer frequentemente, é sempre possível, pelo menos em tese, que informações adicionais tornem não dedutíveis conclusões que o seriam na ausência dessas novas informações”, sobretudo em situações extremas, chamadas de “extreme cases” (casos extremos).
(CHAVES. Cristiano. Derrotabilidade das normas-regras - legal defeseability - no direito das famílias: alvitrando soluções para os extreme cases - casos extremos. Revista do CNMP. n. 4, ano 2014, pp. 295-325).
A teoria da derrotabilidade, em suma, admite que há exceções implícitas a determinadas regras jurídicas, em situações excepcionalíssimas.
A base dessa doutrina está em que o legislador não consegue antecipar todas as circunstâncias fáticas que podem ocorrer, especialmente em contexto de anormalidade; por isso, somente prevê exceções (expressamente) à aplicação de uma dada regra diante de situações fáticas previsíveis (que puderam ser antevistas). No entanto, se pudesse antever determinadas situações excepcionalíssimas, o legislador também as teria previsto como exceções à aplicação da regra.
Foi o que o STJ fez em relação à remição no contexto da pandemia da COVID-19:
a) a regra é a de que não se admite a remição ficta do tempo de pena;
b) a exceção legalmente prevista diz respeito ao preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos, hipótese em que continuará a beneficiar-se com a remição (LEP, art. 126, § 4º);
c) a situação excepcionalíssima que o legislador não teria como antecipar diz respeito à pandemia da COVID-19, que, dentre tantas restrições impostas à população, também impossibilitou os apenados de continuarem com a remição da pena pelo trabalho ou estudo;
d) aplicando a teoria da derrotabilidade das normas jurídicas, o STJ entendeu que, nessa circunstância de grande excepcionalidade, também deve ser assegurada remição ficta da pena no que tange aos apenados que vinham trabalhando ou estudando para remir o tempo da sanção penal e foram impedidos de prosseguirem com suas atividades laborativas ou estudantis.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: