STJ, RHC 135.970. Citação por edital. Prescrição. Suspensão. Limite. Superação. Ação penal. Retomada. Impossibilidade.
Antes da Lei 9.271/1996, o art. 366 do CPP autorizava que o réu citado por edital (citação ficta) fosse regularmente processado e julgado mesmo que não comparecesse ou constituísse advogado para lhe defender. Bastava que a defensoria pública atuasse em sua defesa ou, onde tal órgão não se encontra aparelhado, fosse-lhe nomeado defensor dativo.
Com a Lei 9.271/1996, esse cenário se alterou. A partir de então, o art. 366 do CPP, na sua nova redação, passou a vedar que o réu citado por edital, e que não tenha comparecido ou constituído advogado, seja processado e julgado criminalmente. Ao revés, deve-se suspender, em casos tais, a ação penal:
CPP
Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.
Afora a suspensão do processo, previu-se, também, a suspensão da prescrição, algo absolutamente lógico. Sem embargo, nada se disse sobre a existência de eventual limite para a suspensão do prazo prescricional. E, nesse compasso, surgiu a dúvida: há limite para a suspensão do prazo prescricional determinada pela legislação infraconstitucional, mesmo que esta não tenha predisposto qualquer limite?
Vejam que, se admitido que não há limite para a suspensão do prazo prescricional, se teria, na realidade, nova hipótese de imprescritibilidade para além daquelas consagradas pela Constituição (art. 5º, XLII e XLIV):
CRFB
Art. 5º. (...)
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
(...)
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
A maior parte da doutrina entende que não pode o legislador infraconstitucional ampliar os casos de imprescritibilidade. Existe uma vedação implícita no Texto Constitucional para que a lei o faça: se o próprio constituinte assentou hipóteses de imprescritiblidade em âmbito penal e nada ressalvou, é porque quis estabelecer esses casos excepcionais e deixar todas as demais infrações penais sujeitas a prazo prescricional, algo que homenageia o princípio da segurança jurídica, pilar de nosso Estado Democrático de Direito.
Dando conforto a essa diretriz doutrinária, o STJ consagrou jurisprudência no sentido de que a suspensão da prescrição penal deve ter sempre um limite (à exceção, claro, das hipóteses constitucionais de imprescritibilidade: racismo e ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático), mesmo que a lei não o traga expressamente. E, desse modo, o parâmetro a ser utilizado é o prazo prescricional identificado à luz do máximo da pena cominada à infração penal:
“O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada.” (Súm. 415 do STJ).
Esse posicionamento, sem dúvidas, tem sido observado pelo Tribunal da Cidadania inclusive na hipótese de suspensão do prazo prescricional determinada pelo art. 366 do CPP (redação da Lei 9.271/1996). Não obstante, na aplicação prática de tal verbete sumular a essa hipótese, o STJ vinha entendendo que, uma vez transcorrido período correspondente à prescrição (ao lume da pena máxima cominada ao delito, repise-se), o processo deveria voltar a correr (assim como o próprio prazo prescricional), ainda que o réu não tenha comparecido ou constituído defensor.
O STF, neste ano de 2021, julgou a questão e deu solução parcialmente diversa daquela adotada pelo STJ.
Para o Supremo, a Súmula 415 do STJ é plenamente compatível com a CF/1988. Prestigiando o escólio doutrinário acima ilustrado, entendeu que, deveras, não pode o legislador infraconstitucional ampliar as hipóteses de imprescritibilidade inscritas no Texto Constitucional. Logo, não se pode admitir que a suspensão do prazo prescricional se dê sem limite algum, algo que, na prática, equivaleria a tornar imprescritível o delito.
O Excelso Pretório, todavia, não concordou com a aludida aplicação prática da Súmula 415 do STJ relativamente aos casos em que o réu foi citado por edital e não compareceu nem constituiu advogado. Segundo o Supremo, é inconcebível que alguém seja processado em tais situações. Por isso, ainda que durante a suspensão do prazo prescricional tenha transcorrido período correspondente à prescrição (pela pena máxima in abstrato), não se pode retomar o curso da ação penal se o réu citado por edital ainda não compareceu nem constituiu defensor. Noutras palavras, caso haja a suspensão da ação penal e do prazo prescricional em vista da citação por edital de réu que não compareceu nem constituiu advogado, o transcurso do prazo equivalente à prescrição (calculada a partir da pena máxima cominada à infração penal) faz com que o prazo de prescrição volte a correr (computando-se o lapso já transcorrido até a decisão que determinara a suspensão), mas não autoriza que o curso da ação penal seja retomado.
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENAL. PROCESSO PENAL. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL 438: LIMITAÇÃO DE PRAZO DE PRESCRIÇÃO E SUSPENSÃO DO PROCESSO EM CASO DE INATIVIDADE PROCESSUAL DECORRENTE DE CITAÇÃO POR EDITAL. ART. 366 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ART. 109 DO CÓDIGO PENAL. SÚMULA 415 DO STJ. ART. 5º, INCISOS XLII e XLIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VEDAÇÃO DE PENAS DE CARÁTER PERPÉTUO (ART. 5º, INCISO XLVII, ALÍNEA B). DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO (ART. 5º, LXXVIII, CF). DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL (ART. 5 º, INCISO LIV, CF). AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO (ART. 5º, LV, CF). DIREITO DE AUTODEFESA. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. PACTO DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. PRECEDENTE DO STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Ressalvados os crimes de racismo e as ações de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático listados no art. 5º, incisos XLII e XVIV, da Constituição Federal, a regra geral no ordenamento jurídico brasileiro é de que as pretensões penais devem ser exercidas dentro de marco temporal limitado. Histórico da prescrição no Direito pátrio. Precedente do Supremo Tribunal Federal. 2. A vedação de penas de caráter perpétuo, a celeridade processual e o devido processo legal substantivo (art. 5º, incisos XLVII, b; LXXVIII; LIV) obstam que o Estado submeta o indivíduo ao sistema de persecução penal sem prazo previamente definido. 3. Com exceção das situações expressamente previstas pelo Constituinte, o legislador ordinário não está autorizado a criar outros casos de imprescritibilidade penal. 4. O art. 366 do Código de Processo Penal, ao não limitar o prazo de suspensão da prescrição no caso de inatividade processual oriunda de citação por edital, introduz hipótese de imprescritibilidade incompatível com a Constituição Federal. 5. Mostra-se em conformidade com a Constituição da República limitar o tempo de suspensão prescricional ao tempo máximo de prescrição da pena em abstrato prevista no art. 109 do Código Penal para o delito imputado. Enunciado sumular n. 415 do Superior Tribunal de Justiça. 6. Afronta as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal) o prosseguimento do processo penal em caso de inatividade processual decorrente de citação ficta. Direito subjetivo à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada contra si, assim como à autodefesa e à constituição de defensor. Previsões da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (art. 8º, item 2, alíneas “b” e “d”) e do Pacto de Direitos Civis e Políticos (art. 14, item 3, alíneas “a” e “d”). 7. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a fixação da seguinte tese: Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso. (RE 600851, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-033 DIVULG 22-02-2021 PUBLIC 23-02-2021)
Em vista desse posicionamento consagrado pelo plenário do STF, o STJ teve que rever o seu entendimento na matéria. Com isso, passou a adotar a interpretação de que a ação penal deve continuar suspensa na hipótese do art. 366 do CPP (réu citado por edital e que não comparece nem constitui advogado) mesmo que já tenha transcorrido o prazo correspondente à prescrição pela pena máxima cominada ao delito. Somente a prescrição é que retomará seu curso nessa situação.
Eis a ementa desse histórico precedente:
O Informativo 692 do STJ trouxe julgado em que essa revisão jurisprudencial é retratada:
Citado o réu por edital, nos termos do art. 366 do CPP, o processo deve permanecer suspenso enquanto perdurar a não localização do réu ou até que sobrevenha o transcurso do prazo prescricional.
A pacífica jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que "esgotado o prazo máximo de suspensão processual, nos termos do art. 366 do CPP, regulado pelas mesmas regras contidas no art. 109 do Código Penal - in casu, 12 anos -, e citado o réu por edital, haja vista a sua não localização, deve o feito ter o seu regular prosseguimento, mesmo com a ausência daquele à lide, mediante a constituição de defesa técnica" (RHC n. 112.703/RS, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe de 22/11/2019).
Sucede que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 600.851/DF, apreciado sob o regime de repercussão geral (Tema n. 438/STF), firmou a seguinte tese: "Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso".
Citado o réu por edital, nos termos do art. 366 do CPP, o processo deve permanecer suspenso enquanto perdurar a não localização do réu ou até que sobrevenha o transcurso do prazo prescricional.
A pacífica jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que "esgotado o prazo máximo de suspensão processual, nos termos do art. 366 do CPP, regulado pelas mesmas regras contidas no art. 109 do Código Penal - in casu, 12 anos -, e citado o réu por edital, haja vista a sua não localização, deve o feito ter o seu regular prosseguimento, mesmo com a ausência daquele à lide, mediante a constituição de defesa técnica" (RHC n. 112.703/RS, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe de 22/11/2019).
Na oportunidade, consolidou-se a constitucionalidade do entendimento cristalizado no Enunciado n. 415 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o período máximo da suspensão do processo, na hipótese prevista no art. 366 do Código de Processo Penal, em que o réu citado por edital não comparece, nem constitui advogado, não pode ultrapassar o lapso temporal previsto para a configuração da prescrição pela pena máxima abstratamente cominada ao delito.
Por outro lado, firmou-se, também, o entendimento de que, enquanto não localizado o réu citado por edital, já que se trata de uma ficção jurídica, o prosseguimento do processo penal afronta as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal), concluindo-se, assim, pela constitucionalidade da suspensão do processo sem prazo determinado, conforme prevê o art. 366 do Código de Processo Penal.
Nesses termos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça deve ser revista para se adequar a novel orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, em que se reconheceu a impossibilidade de prosseguimento do processo penal em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital. RHC 135.970/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 20/04/2021.
Para finalizar, vamos com um exemplo prático para bem fixar a correta aplicação desse magistério jurisprudencial:
João Sumido foi denunciado pelo Ministério Público por ter praticado o crime de roubo. Após várias tentativas do Juízo para localizá-lo, e encontrando-se em local incerto e não sabido, acabou sendo citado por edital, sem que tenha comparecido ou constituído advogado.
Nessa situação, a prescrição, que havia iniciado a sua contagem no dia da consumação do crime (art. 111, inciso I, c/c art. 10, ambos do Código Penal), restou suspensa, assim como a própria ação penal, tudo na forma do art. 366 do CPP.
A pena máxima cominada para o crime de roubo (simples) é de 10 anos (CP, art. 157, caput). Logo, a prescrição, pela pena in abstrato, se dará em 16 anos (CP, art. 109, II).
Se, desde a decisão que determinara a suspensão, houver transcorrido período superior a 16 anos sem que o réu tenha sido localizado ou tenha constituído advogado, o que ocorrerá? O prazo prescricional retomará seu curso (computado o período já transcorrido desde a consumação do crime até a data que determinou a suspensão com fulcro no art. 366 do CPP), mas o processo continuará suspenso.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: