STJ, Súmula 648. Habeas corpus. Ação penal. Trancamento. Justa causa. Sentença condenatória. Prejudicialidade.
Justa causa, como sabemos, é o lastro probatório mínimo (elementos de fato) que deve embasar a denúncia ou queixa-crime, do qual deriva a possível prática de uma infração penal (elementos de direito). É o fumus comissi delicti que justifica que alguém seja processado criminalmente — isso porque ser processado criminalmente representa algo que, por si só, já afeta o seu status dignitatis, sobretudo em uma sociedade que, de uma forma geral, não dá valor ao devido processo legal e toma como verdadeira qualquer acusação, vinda de onde for, mormente se veiculada pela grande mídia. Caso não se faça presente a justa causa, será caso de rejeição da denúncia, com fulcro no art. 395, III, do CPP:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - for manifestamente inepta;
II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou
III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.
Vê-se, pois, que a presença de justa causa é uma condição (genérica) da ação penal. Caso, portanto, alguém esteja respondendo a uma ação penal cuja peça acusatória não se fez acompanhar de um mínimo de elementos probatórios a indicar, em um juízo de cognição sumária, a existência do delito e da autoria delitiva imputada ao acusado, haverá flagrante ilegalidade. Não prevendo a legislação recurso contra a decisão que recebe a denúncia ou queixa-crime, admite-se a impetração de habeas corpus para veicular pretensão de reconhecimento de ausência de justa causa e consequente trantamento da ação penal, ainda que a título excepcional e contanto que não se faça necessário o exame aprofundado de fatos e provas:
II - O trancamento da ação penal constitui medida de exceção que se justifica apenas quando estiverem comprovadas, de plano e sem necessidade de exame aprofundado de fatos e provas, a inépcia da exordial acusatória, a atipicidade da conduta, a presença de excludente de ilicitude ou de causa de extinção de punibilidade ou a ausência de indícios mínimos de autoria ou de prova de materialidade.
III - Justa causa para a ação penal condenatória é o suporte probatório mínimo ou o conjunto de elementos de fato e de direito que evidenciam a probabilidade de confirmar-se a hipótese acusatória deduzida em juízo. Constitui, assim, uma plausibilidade do direito de punir, extraída dos elementos objetivos coligidos nos autos, os quais devem demonstrar satisfatoriamente a prova de materialidade e os indícios de que o denunciado foi o autor de conduta típica, ilícita (antijurídica) e culpável. (AgRg no RHC 137.951/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 30/03/2021, DJe 09/04/2021)
“(...) 3. Esta Corte Superior pacificou o entendimento segundo o qual, em razão da excepcionalidade do trancamento da ação penal, tal medida é possível somente quando ficar demonstrado - de plano e sem necessidade de dilação probatória - a total ausência de indícios de autoria e prova da materialidade delitiva, a atipicidade da conduta ou a existência de alguma causa de extinção da punibilidade. É certa, ainda, a possibilidade de trancamento da persecução penal nos casos em que a denúncia for inepta, não atendendo o que dispõe o art. 41 do Código de Processo Penal - CPP, o que não impede a propositura de nova ação, desde que suprida a irregularidade. (...) 5. "Segundo jurisprudência sedimentada nesta Corte Superior, a propositura da ação penal exige tão somente a presença de indícios mínimos e suficientes de autoria e materialidade. A certeza será comprovada ou afastada durante a instrução probatória, prevalecendo, na fase de oferecimento da denúncia o princípio do in dubio pro societate" (AgRg no RHC 130.300/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 27/10/2020). (AgRg no HC 589.111/TO, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 13/04/2021, DJe 16/04/2021)
“1. O trancamento do processo-crime pela via do habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível quando emerge dos autos, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, a atipicidade do fato, a ausência de indícios capazes de fundamentar a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, circunstâncias não evidenciadas no caso em apreço. 2. Para reconhecer que não haveria prova da materialidade e indícios de autoria, seria necessário, inevitavelmente, o aprofundado reexame do conjunto fático-probatório, que é impróprio nesta via. Dessa forma, não se pode impedir o Estado, antecipadamente, de exercer a função jurisdicional, coibindo-o de realizar o levantamento dos elementos de prova para a verificação da verdade dos fatos, o que constitui hipótese de extrema excepcionalidade, não evidenciada na espécie. É prematuro, pois, determinar desde já o trancamento do processo-crime. (HC 595.519/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 06/04/2021, DJe 15/04/2021)
“5. O trancamento da ação penal, por meio do habeas corpus, só é possível quando estiverem comprovadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a evidente ausência de justa causa. Precedentes. Ademais, o acolhimento da tese de atipicidade da conduta demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório, o que não é possível na via processualmente restrita do habeas corpus. (HC 166635 AgR-ED, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 27/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 13-05-2020 PUBLIC 14-05-2020)
Imagine que o réu, inconformado com o recebimento da peça acusatória, impetre habeas corpus junto ao Tribunal (o juiz que recebe uma denúncia desacompanhada de justa causa torna-se a autoridade coatora para a impetração) ao argumento de que não há justa causa para que a ação penal tenha curso. No entanto, antes do julgamento do writ, sobrevém sentença condenatória. Nessa hipótese, ainda poderia ser examinada a questão no habeas?
O firme magistério jurisprudência do Tribunal da Cidadania ensina, de longa data, que a superveniência da sentença condenatória prejudica o pedido de trancamento da ação penal por falta de justa causa feito em habeas corpus. A razão é absolutamente lógica: se se alega que não haveria sequer um mínimo de elementos probatórios que legitimassem o processamento da ação penal, a prolação de sentença condenatória revela que, mais do que elementos probatórios mínimos, as provas produzidas nos autos foram suficientes para revelar a materialidade e a autoria delitivas para além de qualquer dúvida razoável. Pode a defesa questionar isso? Claro que pode. Mas deverá fazê-lo na via recursal própria, atacando os fundamentos da sentença condenatória que empreendeu juízo de cognição exauriente em torno da pretensão acusatória.
A novidade, na matéria, está no fato de que o Tribunal da Cidadania, recentemente, cristalizou esse entendimento em verbete sumular (Súmula 648 do STJ). Em virtude disso, certamente haverá cobrança nos próximos concursos públicos:
"A superveniência da sentença condenatória prejudica o pedido de trancamento da ação penal por falta de justa causa feito em habeas corpus.” (Súmula 648, Terceira Seção, julgado em 14/04/2021, DJe 19/04/2021)
É interessante notar que a jurisprudência do STF não destoa desse posicionamento:
“Este Tribunal já sedimentou o entendimento de que a superveniência de sentença condenatória prejudica a alegação de falta de justa causa para a ação penal. Precedentes.” (HC 109715, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 29/11/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-237 DIVULG 14-12-2011 PUBLIC 15-12-2011)
De resto, alguns aspectos merecem ser destacados para que o(a) aluno(a) compreenda bem a aplicação concreta do enunciado sumular em tela:
a) não é toda questão veiculada em habeas corpus que ficará prejudicada pela prolação da sentença condenatória. Por exemplo, se o writ impugna tanto a existência em si da ação penal (ao argumento de ausência de justa causa) quanto da prisão preventiva decretada contra o réu, a superveniência da sentença condenatória somente torna prejudicada a discussão concernente à presença de justa causa para a ação penal, não afetando, em regra, o debate em torno dos pressupostos atinentes à prisão preventiva (ou seja, não haverá extinção do habeas, mas apenas a perda parcial do seu objeto);
b) em alguns casos mais excepcionais, a justa causa diz respeito à própria tipicidade da conduta narrada na peça acusatória (questão estritamente jurídica), não tendo relação com a suposta ausência de elementos probatórios mínimos a servir-lhe de lastro. Em casos tais, entendemos que, à guisa de exceção, deveria ser admitida a persistência do objeto do writ mesmo que sobrevindo a sentença condenatória, mas, insista-se, tão somente em situações em que o que se discute é circunscrito ao debate jurídico em torno da tipicidade da conduta irrogada ao réu, sem qualquer relação com a presença de provas acerca da infração penal e da autoria. Frisamos, no entanto, que a Súmula 648 do STJ não faz de modo expresso essa distinção, prevendo, genericamente, que “a superveniência da sentença condenatória prejudica o pedido de trancamento da ação penal por falta de justa causa feito em habeas corpus”.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: