Suspeição. Delegado de Polícia. CPP, art. 107. Nulidade da ação penal. Inocorrência. STJ, REsp 1942942.
O julgado que ora comentamos envolve o polêmico art. 107 do CPP, assim redigido:
CPP
Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.
Como se vê, da literalidade da regra legal deflui que não é possível opor exceção de suspeição do Delegado de Polícia. Nada obstante, deverá a autoridade policial declarar-se suspeito, quando ocorrer motivo legal.
A previsão legal em foco é bastante criticada em sede doutrinária. Emerge um tanto paradoxal impedir que a parte investigada suscite a suspeição da autoridade policial no inquérito e estabelecer que é dever desta autoridade declarar-se, ex officio, suspeita quando ocorrer motivo legal.
Sobre o ponto, anota Renato Marcão:
"Causa estranheza o fato de o legislador ter reconhecido e externado a possibilidade de suspeição do Delegado de Polícia, mas se impedido deve ser arguida mediante exceção. É evidente que a autoridade suspeita - que nem sempre terá a nobre iniciativa de reconhecer tal situação jurídica, caso se encontre imbuída de intenções menos louváveis e inconfessáveis - poderá conduzir a investigação em benefício ou total prejuízo do investigado, com inegável dano à busca da verdade e à própria Justiça, que, ao final, poderá não ser alcançada em razão da maneira como fora conduzida a colheita das provas na fase inicial da persecução" (MARCÃO, Renato. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 351).
Parte da doutrina justifica esse preceito legal ao argumento de que a atividade do Delegado não é de natureza jurisdicional. Nesse linha, ensina Eugênio Pacelli que “A razão de ser da norma é que a autoridade policial não exerce atividade jurisdicional, que vem a ser o objeto da tutela das apontadas exceções” (in Curso de Processo Penal, p. 261). Outros, no entanto, defendem que, conquanto não seja cabível a exceção de suspeição, seria cabível a interposição de recurso administrativo ao Chefe de Polícia, por analogia ao disposto no art. 5º, § 2º, do CPP (TÁVORA; Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal, p. 259).
Semelhante saída é apregoada por Guilherme de Souza Nucci:
"Não é suficiente deixar-se ao critério da autoridade policial fazê-lo. Cremos, pois, que, havendo motivação para a consideração da suspeição do delegado, não podendo o magistrado afastá-lo, por falta de previsão legal, deve a parte interessada solicitar o afastamento da autoridade policial ao Delegado Geral de Polícia ou, sendo o pleito recusado, ao Secretário da Segurança Pública. A questão torna-se, então, administrativa, pois existe recomendação legal para que o afastamento ocorra. Por ordem superior, tal pode ocorrer" (Código de Processo Penal comentado. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 283)
Equacionada a questão atinente à suspeição da autoridade policial, vamos ao caso concreto recentemente julgado pelo STJ.
Cuidava-se de revisão criminal envolvendo condenação pela prática do crime do art. 218-B, § 2º, I, do CP (favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável). Alegava a defesa, em síntese, que a investigação teria sido presidida por Delegado que seria filho de um dos investigados, o que seria causa de nulidade da ação penal.
A Quinta Turma, em primeiro lugar, salientou que o Delegado invectivado pela defesa não teria presidido a investigação criminal, a qual, na verdade, fora conduzida por membro do Ministério Público. Sem embargo, era verdadeira a alegação de que um dos Delegados que atuou nos trabalhos investigatórios efetivamente participou de uma medida de intercepção telefônica no bojo da qual foram colhidas conversas que incriminariam o pai dessa autoridade policial pela prática do mesmo crime do art. 218-B, § 2º, I, do CP. Isso, contudo, não seria causa de nulidade da ação penal, uma vez que, conforme pacífico magistério jurisprudencial, eventual nulidade ocorrida na fase inquisitorial (sobretudo se não repercutir nos elementos probatórios que servem de lastro à peça acusatória) não contamina a ação penal. Outrossim, no caso em apreço a defesa sequer cogitou de falsidade dos diálogos interceptados ou de sua transcrição, além de terem havido outras provas que levaram à condenação do acusado.
Sobre a matéria, confira os seguintes precedentes:
“(...) III - A arguição de suspeição de autoridade policial é expressamente vedada pela norma do art. 107 do Código de Processo Penal. IV - O inquérito policial é procedimento administrativo de caráter inquisitório, informativo e preparatório, cuja finalidade é fornecer ao Ministério Público elementos de cognição para a eventual propositura de ação penal, de modo que eventual irregularidade que nele se manifeste não contamina de nulidade a ação penal. (AgRg no HC 537.179/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2020, DJe 09/09/2020)
“(...) 3. O art. 107 do Código de Processo Penal dispõe, expressamente, não ser cabível a exceção contra as autoridades policiais, quando presidem o inquérito, em razão de sua natureza (peça inquisitorial) como procedimento preparatório da ação penal. As provas amealhadas servem de embasamento para a denúncia, mas não necessariamente para a condenação, sendo que muitos dos atos ali realizados serão confirmados em juízo, sob pena de o magistrado não lhes conferir valor algum. 4. No que se refere à aparente contradição, que prevê que as autoridades policiais devem declarar-se suspeitas, havendo motivo legal, entendo que deveria a parte interessada ter solicitado o afastamento da autoridade policial ao Delegado-Geral de Polícia ou, sendo o pleito recusado, ao Secretário da Segurança Pública, o que não se deu. A questão torna-se, então, administrativa, pois existe recomendação legal para que o afastamento ocorra. Por ordem superior, isso pode acontecer. 6. A declaração de nulidade, como se sabe, exige a demonstração da ocorrência de efetivo prejuízo, o que, in casu, não ficou evidenciado. Ao contrário, o que se observa dos autos é o simples cumprimento pela autoridade policial de suas atribuições legais, inexistindo indícios de que, por causa do mero atrito ocorrido no ambiente profissional em episódio distinto, tenha se desenvolvido qualquer vício de parcialidade nas investigações do Inquérito Policial n. 0004256-98.2014.8.12.0029. A reforçar tal conclusão, deve-se frisar que o paciente foi investigado por supostos crimes cometidos no exercício de seu cargo político de vereador no âmbito da Administração Pública (art. 1º da Lei n. 12.850/2013, arts. 312 e 317 do CP), juntamente com outros vereadores e funcionários da Câmara Municipal de Naviraí/MS, na denominada Operação Athenas, no bojo do qual foram realizadas diversas diligências, não se referindo, portanto, como muito bem dito pelo magistrado a atos isolados, pulverizados, pinçados ao alvedrio da autoridade para supostamente incriminá-lo - pelo contrário - trata-se de ampla e aprofundada apuração, cujo objeto fora a elucidação de um hipotético esquema de corrupção e obtenção de vantagens ilícitas no âmbito da administração pública naviraiense (fl. 213). (...) 8. A jurisprudência desta Superior Corte de Justiça já se firmou no sentido de que eventuais irregularidades ocorridas na fase inquisitorial não possuem o condão de macular o processo criminal. (...) (HC 309.299/MS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 06/08/2015, DJe 26/08/2015)
Para finalizar com uma síntese conclusiva, o art. 107 do CPP não autoriza a oposição de exceção de suspeição contra o Delegado de Polícia (conquanto este tenha o dever legal de se declarar suspeito), cabendo à parte que se julgue prejudicada buscar o afastamento da autoridade policial na esfera administrativa, junto às instâncias superiores do órgão policial. Sem embargo, eventual irregularidade do inquérito não eiva de nulidade a ação penal que dele decorre.
Abaixo, você pode conferir a explicação desse julgado em vídeo: